domingo, 5 de março de 2006

A outra forma de impedir Bolonha

1. Segundo João Sousa Andrade, professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em artigo de opinião hoje publicado no DN, “impor prazos, antecipando 2010, para uma convergência completa não faz sentido. Impor prazos que podem arrastar e, pior que isso, justificar a simples adequação pode ter efeitos catastróficos. / A regra mais útil a respeitar deveria ser a de que nenhum curso adopta o ‘figurino’ de Bolonha se não alterar a forma de ensinar e aprender. A regra deveria ser a inversa da que impõe prazos para a ‘reforma’.
Esta é uma das duas maneiras de não aplicar Bolonha e, assim, não reformar o ensino superior em Portugal (a outra consiste na oposição pura e simples às reformas de Bolonha). E não o é especificamente neste caso. Em geral, uma das maneiras seguras de impedir uma reforma é fazer depender a sua aplicação de um requisito do tipo “ou tudo, ou nada”.
Há, em Portugal, diversos problemas na organização e funcionamento do ensino superior que necessitam de intervenção reformista. Mas não é verdade que esses problemas sejam tão interdependentes entre si a ponto de a resolução de um implicar, necessariamente, a resolução dos outros. Mais, se há nas orientações da reforma de Bolonha propostas por este Governo algum erro grave, este será a sobrevivência, ainda, de algum daquele espírito do “ou tudo, ou nada”, nunca o contrário.

2. A simples substituição de um sistema de ensino centrado numa licenciatura longa por um outro organizado como sequência encadeada de ciclos curtos tem, só por si, ganhos importantes. Entre esses ganhos estão, por exemplo, as possibilidades acrescidas de (1) credenciar parte dos alunos que hoje abandonam a meio o seu percurso escolar no ensino superior, (2) facilitar mudanças de formação a meio do percurso sem perdas excessivas em resultado de uma escolha vocacional inicial que se revela depois desajustada ou de (3) regresso à escola depois de uma primeira profissionalização menos qualificada, quando se pretende uma requalificação ou quando se quer preparar uma mudança de ramo.
Isto para já não falar dos ganhos de justiça relativa quando se comparam durações de formação superior inicial em diferentes países europeus.
Por mim, tenderia a entender que se a adequação a Bolonha começasse por ser “só” isto já seria muito bom. Razão por que a exigência radical de compatibilização entre as durações dos diferentes ciclos de ensino em Portugal e as praticadas, em regra, no espaço europeu, expressa na regulamentação de Bolonha e nas intervenções do ministro Mariano Gago, merece todo o apoio e deveria mesmo constituir, nesta primeira fase, o principal requisito da adequação a Bolonha.

3. Bolonha é também uma organização curricular que tem por base o tempo de trabalho dos alunos necessário para concretizar com sucesso as aprendizagens em cada disciplina (“unidade curricular”) área científica e curso (“ciclo de estudos”): os tão falados ECTS. É neste plano que poderão ser introduzidas correcções a práticas actuais menos eficientes ou racionais. Mas este plano pode ser resolvido independentemente do anterior, como é aliás ilustrado com o facto de em alguns cursos, faculdades ou universidades a passagem progressiva para o novo sistema de créditos ter começado antes da reforma da organização e duração dos ciclos de estudos.
Se em algumas instituições começou antes da aplicação de Bolonha, noutras poderá perfeitamente começar depois sem que daí venha grande mal ao mundo. E deverá poder começar sem grandes exigências de acerto imediato, admitindo-se que o percurso tenha uma componente de “tentativa e erro”, desde que devidamente monitorizada. É preferível um maior gradualismo a uma ilusão de rigor nesta passagem, como a que resulta da confiança depositada nos “inquéritos” a alunos e professores como instrumento de aferição dos tempos de aprendizagem, inquéritos esses exigidos nos documentos sobre a regulamentação da transição.
Por exemplo, desde que se leve a sério que os ECTS medem tempos de aprendizagem realistas, é possível começar a reformar programas e, sobretudo, bibliografias, sem fazer um único inquérito formal. Ou alguém acredita que bibliografias com dezenas de títulos e sem um único manual de referência são instrumento sério de aprendizagem? A mim, o que me disseram da última vez que apresentei uma bibliografia adequada ao tempo e formação prévia dos estudantes, foi que era preciso que ela fosse mais longa para não “sermos” mal classificados pela comissão externa de avaliação do curso…

4. Em resumo, é preferível que o mais rapidamente possível os vários cursos vão passando para Bolonha, do que desenhar e (tentar) aplicar uma transição para Bolonha perfeitamente controlada e com completa sincronia: sincronia entre cursos, escolas e universidades, e sincronia entre todos os aspectos da reforma. A exigência da primeira sincronia foi já abandonada na regulamentação da transição. Seria importante que a segunda o fosse também, através de uma priorização sensata dos desafios que estão em jogo quando do registo dos pedidos de adequação.
Gradualismo e assincronia são caminhos mais realistas e possíveis do que o “ou tudo, ou nada” dos outros (ainda que involuntários) adversários de Bolonha.