quarta-feira, 24 de maio de 2006

Da fronteira ao muro

1. Sabe-se, desde que foram publicados os dados do censo americano de 2000, que existe hoje nos EUA um fenómeno de proporções novas: a imigração ilegal (sobretudo de mexicanos). Mais conhecida dos europeus, esta tinha menor impacto em países com uma história longa de imigração legal, como os EUA. E o contraste entre europeus e americanos tendia a ser explicado exactamente pela diferença entre políticas de imigração restritivas, gerando ilegalidade, e políticas de promoção da imigração, onde a ilegalidade tendia a ser reduzida. A descoberta de que a imigração ilegal cresceu nos EUA, que chegaria ao conhecimento de um público mais alargado já este ano com as manifestações dos “indocumentados” contra a política bushiana, parecia desmentir tal explicação.

2. Convirá, porém, ter um pouco mais de prudência. De acordo com os resultado de um estudo dirigido por dois dos maiores especialistas sobre a migração do México para os EUA (Crossing the Border , coordenado por Jorge Durand e Douglas S. Massey), existe uma relação, aparentemente paradoxal, entre a emergência de orientações crescentemente restritivas na política americana de imigração, a partir de 1986, e o crescimento da imigração ilegal de fixação. Apesar de paradoxal não é muito difícil de explicar. Segundo os autores, a migração ilegal de mexicanos para os EUA, sendo antiga, tinha, no passado, um predomínio de movimentos sazonais sobre a fixação da residência. Esta sazonalidade, porém, foi-se tornando mais difícil à medida que se processava a militarização da fronteira. Aumentando os riscos de travessia ilegal da fronteira, progressivamente transformada em muro, os sazonais vão-se fixando. Agora estabelecidos nos EUA, tornam-se, por sua vez, em pontos de contacto de redes informais de suporte à migração mexicana ilegal, que cresce. Ou seja, uma política mais restritiva de controlo dos fluxos poderá ter sido, também nos EUA, um dos factores que contribuíram para o aumento da ilegalidade do fluxo.

3. Este efeito perverso das políticas restritivas de controlo da fronteira não é desconhecido na Europa, onde tem sido tratado, por exemplo, por Catherine Withol de Wenden. O maior controlo dos fluxos migratórios só é eficaz se a par de mais rigor na fronteira houver canais efectivos de migração legal, e canais diferenciados. Sem esses canais, o rigor na fronteira traduz-se em imigração irregular mais do que em redução da imigração. E sem canais específicos para a imigração sazonal, transforma-se esta em imigração permanente (e ilegal), diminuindo-se o fluxo migratório mas fazendo-se crescer o volume da população estrangeira residente. Quando se substitui uma política de controlo dos fluxos migratórios por uma política de restrição da imigração, a fronteira transforma-se: de ponto de passagem controlado passa a muro, mas um muro que, num mundo de deslocações globais, será sempre muito poroso. Perde-se assim capacidade de regulação com todos os inconvenientes conhecidos na nossa história recente, durante a qual a imigração diminuiu nas estatísticas mas cresceu nas ruas.
Perdendo todos (ou quase todos…).