sexta-feira, 14 de novembro de 2008

A segunda revolução

O contributo de Luís Capucha:

«No dia 25 de Abril de 1974, uns mais madrugadores que outros, todos viemos para a rua celebrar o fim de uma ditadura que nos conduziu a uma guerra sem sentido, à emigração em massa, à pobreza generalizada, ao analfabetismo, ao subdesenvolvimento e à repressão. Fizemos a festa quase todos juntos. Apenas quase todos porque os responsáveis pela ditadura quase todos submergiram, para aparecerem mais tarde, uns reconvertidos e reciclados como figuras da democracia e outros reaplicando as velhas qualidades conspirativas em ocasiões propícias e ao serviço de interesses diversos.

«A festa deu lugar a uma luta estratégica para a escolha do futuro colectivo. O modelo de sociedade pró-soviético (representado hoje pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda) foi esmagadora e democraticamente derrotado, a favor do modelo pró-europeísta. E o país pôde progredir, aproximando-se dos seus novos parceiros numa série de domínios fundamentais.

«As instituições democráticas consolidaram-se, a separação de poderes operou-se, o mercado, apesar das imperfeições, passou a ocupar o seu lugar na trilogia da relação entre estado, economia e sociedade civil, os parceiros sociais viram crescer o terreno que só espera ser ocupado pela concertação social de negociação em vez do de confronto, desenvolveram-se sistemas institucionais como o de saúde e protecção social, a escolaridade expandiu-se e os níveis de escolaridade aumentaram, as infra-estruturas básicas de comunicações, transportes, saneamento ou abastecimento de agua e energia foram-se espalhando pelo território, as famílias modernizaram as suas estruturas a um ritmo sem paralelo em nenhum outro domínio, o país urbanizou-se, cresceram as classes médias urbanas ligadas à expansão dos serviços, entre um conjunto de outras mudanças relevantes.

«Até que chegámos aos primeiros anos do novo século e começámos a descobrir que o ciclo de desenvolvimento se esgotava. Começou a patinar nas fronteiras da nova economia global do conhecimento e da informação. Nomeadamente, para referir alguns dos campos mais evidentes da descoberta, a parte da economia baseada nos baixos salários é visivelmente cada vez menos sustentável e produtiva. As estruturas sociais que se tinham aberto um pouco, fecharam-se, no topo por reconstrução das velhas elites (entretanto ligeiramente refrescadas) económicas, sociais e culturais. No fundo da escala social, por via da consolidação da pobreza que, apesar da perda de dimensão, tende a ganhar solidez entre os grupos que atinge. Pelo meio foram-se construindo novas categorias sócio-profissionais, uma boa parte delas resultante do crescimento dos serviços estatais. A essas categorias tinham ascendido alguns descendentes das classes populares, mas os lugares foram preenchidos e onde antes vigoravam oportunidades de promoção social cada vez mais se desenvolvem estratégias de fechamento para defesa das regalias corporativas “conquistadas”. O corpo dos juízes, dos jornalistas, dos médicos ou dos professores são exemplos desse processo.

«Percorremos metade do caminho que nos levava para junto dos novos parceiros europeus, mas é precisa uma nova revolução para percorrer a outra metade. Esta é a revolução das qualificações. Com vista a (i) operar a ruptura com os atavismos que impedem a modernização da economia do conhecimento, (ii) promover o desenvolvimento de estruturas sociais e profissionais assentes em mecanismos de acesso baseados no mérito e no esforço e não no estatuto de origem – quer dizer, igualdade nas oportunidades de facto e não apenas nas palavras – e (iii) reforçar o combate à pobreza.

«Sem qualificações e aprendizagem torna-se impossível a sustentação do crescimento económico baseado em melhores empregos. Sem qualificações e aprendizagem as elites perpetuam-se no poder e a sociedade não se democratiza. Sem qualificações e aprendizagem nem se geram meios para combater a pobreza nem se distribuem entre os mais desfavorecidos ferramentas de promoção pessoal, profissional e social.

«Naturalmente, esta revolução não pode ser operada por via das “chaimites” e dos militares na rua. O vector estratégico desta nova revolução destinada a completar os ideais democráticos de Abril passa pelo sistema de educação/formação. O sistema de educação destinado a seleccionar os eleitos para o prosseguimento de estudos que alimentavam as elites e as corporações, terá de ser substituído por um sistema de educação/formação capaz de proporcionar uma escolaridade prolongada para todos e a concessão de uma via de regresso massivo à aprendizagem dos adultos.

«É essa revolução – podem também chamar-lhe reforma profunda, pois o resultado é o mesmo – que está em curso no nosso país. Ela implica, como todas as revoluções, muito esforço, muita controvérsia, muita luta séria, mas também muitos golpes traiçoeiros de exploração do medo, de mistificação da realidade, de descredibilização das medidas que lhe dão corpo, de resistência à mudança.

«Mudança nas infra-estruturas, com a reabilitação do parque escolar que durante décadas foram deixando degradar; modernização dos equipamentos e recursos didáctico-pedagógicos (que falta faz a tanta gente a “culpa do sistema e a “falta de condições”); transformações profundas do perfil dos projectos educativos, com a valorização das vias vocacionais e o crescimento dos alunos que os frequentam e por isso já não abandonam precocemente a escola; o aprofundamento do trabalho em áreas chave como o português, a matemática e as ciências verificado ao mesmo tempo que se diversificam as iniciativas de educação nas áreas das expressões, da saúde, do empreendorismo, do ambiente e da cidadania; a criação da escola a tempo inteiro e a oferta de actividades de enriquecimento curricular no primeiro ciclo; o apoio especial dado às escolas confrontadas com problemas mais graves por via do Programa TEIP, a criação de um movimento social de grandes proporções e muito trabalho no domínio da educação/formação de adultos, eis alguns exemplos da matéria de que é feita a revolução do sistema de educação/formação.

«Mudanças, também, no campo das condições para sustentar todas as outras: a gestão dos recursos. Sem elas não se podiam alcançar os resultados que estão a ser alcançados – crescimento do número de alunos, melhoria geral dos resultados escolares, adesão de centenas de milhares de adultos às novas oportunidades, quase tantos alunos do secundário nas vias científico-humanísticas como nas vias vocacionais, para apenas citar alguns dos principais impactes da actual revolução na educação. Por isso decorre o processo de autonomização das escolas, reforçando a característica de “serviço de proximidade” do ensino/aprendizagem; por isso se estruturou a profissão de professores criando a categoria de “professor titular” a quem são atribuídas tarefas adequadas à senioridade; por isso se introduziu a avaliação para que as progressões deixem de ser automáticas e cegas em relação à qualidade dos desempenhos e aos méritos de cada um. Os milhares de professores e agentes educativos que, embora por vezes confusos, não embarcam no movimento contra-revolucionário, provam que muitos percebem que essa distinção tem de ser operada para que a qualidade do ensino/formação ganhe espaço.

«Claro que esta revolução, como todas as revoluções, tem os seus inimigos. Desde logo, os poucos – mas com vozes ampliadas pelos órgãos de comunicação social – que beneficiavam do subdesenvolvimento e das baixas qualificações umbilicalmente ligadas aos baixos salários; depois, os que detinham o monopólio do acesso a qualificações escolares relativamente raras. Parecendo por vezes colocados em campos opostos, partilham mais interesses do que se supõe, razão pela qual aos conservadores de direita se juntam os conservadores ditos de esquerda, derrotados quando o país escolheu o modelo europeu. Acrescente-se-lhes aqueles que se julgavam definitivamente instalados num sistema que permitia todo o tipo de regalias sem exigir nenhuma contrapartida mensurável no plano dos resultados do seu trabalho. Compreende-se, assim, a actual turbulência à volta da educação. Ela é, por assim dizer, inevitável.

«Neste momento a controvérsia e a contestação anda à volta da avaliação dos professores. Mero pretexto para fazer regredir todo o processo de modernização que está em curso. Neste quadro, as alegadas questões técnicas do “modelo de avaliação do Ministério da Educação”, não passam de “fumaça”. A maioria delas, aliás, foi deliberada e artificialmente fabricada para lançar a suspeição sobre a medida, incendiar o país e criar o pânico. Qualquer especialista em recursos humanos subscreveria esse modelo e os muitos exemplos de uma correcta aplicação do modelo provam-no.

«O que está em causa, de facto, não é nem um problema técnico do modelo da avaliação, nem o estilo da governação. O que está em causa é saber se um governo legitimamente eleito pode ou não realizar uma reforma do maior alcance estratégico, sem ceder aos interesses corporativos e/ou políticos de sectores capazes de se mobilizar para paralisar a mudança e manter privilégios ilegítimos.

«De todo o processo já resultou um perdedor: o PSD. Juntando-se aos sindicatos e reclamando o retrocesso no processo de reformas em cursos, o que o PSD mostrou é que, se chegar ao poder, não será capaz de promover nenhuma reforma, trocando o dever moral de governar a favor do país pela cedência facilitista à contestação na rua.

«Quem não pode perder é o país, que não pode dar-se ao luxo de regressar à educação/formação que (não) tinha.»

Luís Capucha