Sacrificium
1. O disco:
Cecilia Bartoli,
Sacrificium
com Il Giardino Armonico, dirigido por Giovanni Antonini
2 CD + hardcover com 152 pp.
Decca, Universal, 2009
Primeiro, para ouvir, depois, para ler, por fim, para pensar um pouco.
2. Esta é uma compilação de música para castrados, produzida sobretudo em Itália ao longo do século XVIII. Primeiro, porque às mulheres estava interdito o pronunciamento nas igrejas, inclusive cantando, depois, e sobretudo, por procura de vozes potentes e agudas para a ópera, a castração de jovens, antes da puberdade, teve uma procura crescente em Itália. Estima-se que, no auge dessa procura, entre 1720 e 1730, seriam castrados, anualmente, a sangue frio, cerca de 4000 jovens italianos, maioritariamente de origens sociais mais pobres. Destes, meia dúzia conseguiria um estatuto de estrela, depois de um treino intensivo de anos em escolas de canto.
3. No coração da história cultural europeia, não nas suas margens, estabeleceu-se assim uma tradição que poderia rivalizar com a da ablação do clítoris ainda hoje praticada em muitas zonas de África. Tradição que viria a ser politicamente derrotada no contexto da reunificação italiana, apesar de ter sobrevivido ainda algumas décadas mais no Vaticano.
4. O que ilustra algo que, por mais de uma vez, referi já no Canhoto. A história da modernidade não é a história longa de uma tradição específica que distinguiria a Europa de outros espaços civilizacionais, mas a história de uma vitória, na Europa, de um projecto civilizacional novo contra a tradição europeia.
5. Não faz por isso sentido o raciocínio de que não são universalizáveis os valores fundamentais desse projecto civilizacional novo por desadequação em relação às tradições vigentes noutras partes de mundo. Em todo o mundo, a vitória dos valores humanistas e universalistas que estão na base dos direitos humanos foi, é e será a vitória da razão contra a tradição. Como o foi na Europa.