É o denominador, stupid
O resultado da estimativa do valor do défice para 2005 constitui um claro indicador de que nos aproximamos rapidamente do limite de financiamento possível das actividades públicas. Como muito falta ainda fazer no plano das políticas públicas, é indispensável racionalizar o uso dos recursos públicos, do lado da despesa, e construir possibilidades de progressão, não conjunturais, da receita fiscal. As medidas de combate ao défice anunciadas pelo Governo são sobretudo eficazes no primeiro domínio. No que se refere à correcção da dinâmica da receita, muito haverá ainda a fazer, sendo fundamental, em especial, tornar mais rigoroso o valor do PIB, através da progressiva formalização da actividade económica. Três motivos principais justificam uma maior atenção a este objectivo.
Em primeiro lugar, o grau de informalidade da economia em Portugal constitui um dos principais obstáculos ao aumento da competitividade da economia nacional através da inovação tecnológica, aproximando-nos de padrões de especialização terceiro-mundistas assentes no dumping social. Não haverá sucesso de qualquer plano tecnológico com esta concorrência desleal.
Em segundo lugar, a informalidade constitui o maior dos ataques ao modelo social europeu, modelo que importa reformar mas nunca eliminar: num mundo sem direito formal prevalece, sem controlo, a lei do mais forte. Os que usam o problema do défice como pretexto para liquidar as políticas sociais, transformando-as, quanto muito, em políticas assistencialistas minimalistas, gostariam de aproximar a regulação do mercado de trabalho dos moldes da economia informal. É o caminho contrário que necessitamos de percorrer. Assim como o fim das políticas de angariação de receitas extraordinárias pôs fim a modalidades encapotadas de privatização (barata) de bens públicos, o combate à informalidade significará a derrota dos ataques às políticas sociais a pretexto do défice.
Por fim, a progressiva formalização da actividade económica permitirá corrigir o denominador da medida do défice, ganhando margem de manobra na política orçamental e ampliando a base colectável tanto no plano fiscal como das contribuições para a segurança social. Que a direita neoliberal se preocupe pouco com os efeitos da informalidade sobre o valor relativo do défice compreende-se: quanto maior o défice em percentagem do PIB, mais fácil lhe fica justificar o objectivo de desmantelamento das políticas e serviços públicos e privatizar o Estado ao desbarato. Um PIB mais baixo do que a realidade vem, pois, mesmo a calhar.
Uma medida de combate à informalidade concretizável no curto prazo seria a forte penalização da não documentação de receitas em qualquer transacção de bens ou serviços. Estabelecer multas elevadas para fornecedores e clientes, sempre que numa transacção comercial não for emitido o respectivo documento de receita fiscalmente válido, seria relativamente fácil e não exigiria grandes recursos de fiscalização. Bastaria, para concretizar esta medida com eficácia, que as multas fossem muito elevadas tanto para vendedores como para clientes e que se realizassem acções de fiscalização pontuais com resultados publicitados. Assim se dissuadiria muita da complacência actual com a informalidade.
E para começar com alguns exemplos de valor pedagógico: acabe-se com a irritante possibilidade de as máquinas de pagamento automático só passarem recibo caso o comprador se lembre de carregar, rapidamente, no botão necessário para o efeito (frequente no pagamento de estacionamento) ou se manifestar explicitamente vontade nesse sentido (como acontece nas de venda de bilhetes de metro).