terça-feira, 12 de julho de 2005

Corporações

Ontem, no Clube dos Jornalistas, na 2, discutiu-se o papel dos média no “arrastão” que não existiu. Venceu o corporativismo jornalista, mesmo estando presentes alguns dos jornalistas menos corporativos dos média nacionais.
E venceu porque dominou no debate a tentativa de reduzir a invenção da realidade social fabricada a 10 de Junho a um simples engano de escala. Não foi. Não sabemos ainda hoje o que realmente aconteceu, mas não é “apenas” uma questão de escala a transformação de todos os negros presentes na praia num bando de delinquentes. Como não é uma “simples” questão de escala a utilização, na abertura dos telejornais, de termos como “pânico” ou “grande violência”.
Venceu ainda o corporativismo sempre que o trabalho jornalístico foi candidamente desculpabilizado com base no “comunicado da polícia”. Só nos faltava descobrir que a informação veiculada por fontes policiais não é, por regra, sujeita a qualquer tipo de validação, sobretudo quando o assunto é grave.
Porque esta é a questão. Não se tratou de um engano trivial, mas de um erro colossal nos seus efeitos. Se um médico deve ser responsabilizado quando, por NEGLIGÊNCIA, produz danos graves a um doente, o que fazer quando, por NEGLIGÊNCIA, os média produzem danos graves na nossa vida social comum? Quando, objectivamente e por negligência, fomentam uma percepção racista do mundo e contribuem para a estigmatização dos jovens negros de Lisboa e do país? Quando, objectivamente e por negligência, fomentam o medo no quotidiano de Lisboa, transformando pessoas comuns em militantes de causas Rambo? Objectivamente, não intencionalmente, é certo. Mas também o dito médico, tantas vezes protagonista nos média, alguma vez quis provocar danos intencionalmente no doente?
E uma dúvida insidiosa mas que não pode deixar de ser colocada. Terá sido porque a percepção racista do mundo está instalada nas redacções, ainda que num plano não consciente, que os controlos sobre um acontecimento não trivial se mantiveram por activar?
Por fim, quando estranho a ausência de qualquer retratação pública dos média, e em particular das televisões, a propósito do caso do “arrastão” que nunca existiu, não é por uma qualquer exigência de expiação mais ou menos cristã. Mas porque preciso de restabelecer um mínimo de confiança nos média, sem a qual a minha disponibilidade para reagir em função das notícias que estes divulgam ficará diminuída. Como ficará assim diminuída, de forma inaceitável, a minha cidadania, isto é, a minha capacidade de agir sem depender de um conhecimento directo dos factos.
Recuso a redução da minha cidadania a uma cidadania aldeã (aliás uma impossibilidade lógica e terminológica).