domingo, 18 de setembro de 2005

Estranho argumento

Primeiro foi Pacheco Pereira, no Público, mas o argumento generalizou-se, sendo, por exemplo, utilizado também por Henrique Monteiro, no Expresso.
A propósito das críticas que sublinhavam o facto de a maioria das vítimas mais afectadas pelo Katrina ser negra, manifestaram aqueles cronistas o seu espanto por haver quem destacasse um facto tão trivial. JÁ SABÍAMOS, insistem, já sabíamos que há pobreza nos EUA e que os negros norte-americanos estão entre os mais pobres dos pobres. Porquê o espanto à esquerda com o facto?
Estranho argumento.
Pois não é quando os fenómenos indesejáveis se tornam particularmente visíveis, por qualquer razão, que é mais eficaz a crítica do que então se revela? Todos sabemos que o fundamentalismo islâmico militante não se recomenda. Mas quando este ataca, como o fez em Nova Iorque, Madrid ou Londres, fazemos o quê? Encolhemos os ombros e dizemos que já sabíamos?
Estranho argumento, de facto.
Como estranha é a tentação de colocar no campo do “anti-americanismo primário” a crítica das orientações ideológicas da direita americana no poder, com base nas consequências dessas orientações que a catástrofe do Katrina tornou evidente. Arrisca-se a uma curiosa simetria com a desculpabilização do terrorismo islâmico feita por quem, à esquerda, preza pouco a liberdade: neste caso, por quem, à direita, preza pouco a igualdade.

PS Recusada pertinência ao argumento do “já sabíamos”, é óbvio, porém, que Henrique Monteiro tem razão quando critica Fernando Rosas por este considerar as consequências do Katrina equivalentes às de uma qualquer catástrofe no Terceiro Mundo. A indiferenciação radical é não só demagógica como perigosa, pois acaba por ter como resultado o branqueamento das piores situações. Faz lembrar Freitas do Amaral quando tratou como equivalentes Portugal e Angola a propósito da corrupção.