quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Laicidade e Estado de direito

1. O princípio da laicidade orienta a regulação das relações entre Estado e igrejas, não entre Estado e religiões, pois começa por presumir que a religião não é assunto de Estado. Porque é preciso regular as relações entre Estado e igrejas? Porque estas não são simples comunidades de crentes mas organizações (terrenas) de crentes que tendem a incluir entre os seus objectivos a influência política sobre as colectividades em que estão presentes. Como a história o demonstra. Não é pois por motivos religiosos que o cardeal-patriarca tem assento nas cerimónias públicas em pé de igualdade com o Presidente da República, mas por motivos políticos. É pois escusado o argumento da religiosidade dominante entre os portugueses como justificação de um privilégio político. Privilégio que representa e reforça uma capacidade política para competir com vantagem com outras confissões (e não confissões), bem como para traduzir para a ordem jurídica os resultados dessa vantagem competitiva. Por outras palavras, os dilemas da laicidade são dilemas políticos, e apenas políticos, que se colocam sempre que as igrejas agem como actores políticos.

2. Em Portugal, o princípio da laicidade tem expressão constitucional e na lei comum. As múltiplas violações desse princípio, que os textos de Fernanda Câncio documentam no DN de ontem, 5 de Outubro, e que foram já objecto de denúncia pública por associações de defesa da laicidade do Estado, têm uma dupla gravidade. Pela sua substância, para quem entende como acertados os modos de expressão do princípio da laicidade na nossa ordem constitucional e jurídica. Mas também no plano formal, independentemente do acordo com aquele princípio, a menos que se entenda também como dispensável o próprio Estado de direito. Que Pedro Mota Soares do CDS/PP não perceba isto não surpreende. Mas já é estranha a posição do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que transcrevo do mesmo DN:

Só há duas pessoas que nas cerimónias em que há misturas de órgãos de soberania têm lugar de destaque: o Presidente da República e o cardeal-patriarca. Reserva-se um cadeirão para cada um: é a tradição do protocolo português. […] A Igreja Católica tem sempre uma posição de destaque, que se baseia num critério que vem desde sempre, e que não foi alterado depois do 25 de Abril.

Na sua classificação dos sistemas de autoridade, Max Weber distinguiu entre autoridade tradicional e autoridade racional-legal, usando um critério muito simples: no primeiro caso, a justificação da autoridade faz-se com o argumento de que “sempre foi assim”; no segundo, com o argumento de que “a lei assim o exige”. O Estado de direito concretiza-se na obediência ao segundo argumento de autoridade. É o Estado de direito dispensável para o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros?