domingo, 27 de novembro de 2005

Tradição

Custa-me a acreditar que isto está a acontecer. É uma tradição tão antiga que não percebo a decisão do Governo. [D. Januário Torgal, Bispo das Forças Armadas, CM, 27/11/05, sobre a polémica dos crucifixos]

Pouco importa agora a polémica dos crucifixos nas escolas, mas o argumento da tradição. Agravado pelo da antiguidade da dita.
Justificar algo por referência à tradição significa justificar o que se faz porque sempre se fez. Porque é costume. É o oposto do uso da razão, da argumentação lógica, como Weber salientou muitos anos atrás. E tem um problema: nada nos diz sobre a justeza ou a decência do que sempre se fez. Ora, como o passado tem muito de pouco recomendável, a razão recomenda a desconfiança em relação ao argumento da tradição. Sobretudo se muito antiga, pois quanto mais recuamos no tempo mais fácil é deparar com modos de agir e de organizar a vida social que hoje nos repugnam profundamente.
O argumento da tradição faz-me sempre recordar uma crónica de Eduardo Prado Coelho, no Público, particularmente bem sucedida, em que este narrava a justificação da recusa do Ayatollah Khomeini em responder às perguntas de uma jornalista do Le Monde, na última conferência de imprensa em Paris antes de partir para o Irão onde iria liderar o regime teocrático instalado pela revolução islâmica. Desculpava-se o secretário de Khomeini perante a jornalista com a justificação que a tradição mandava que o Ayatollah não respondesse a uma mulher…
Já para não falar de tradições como as execuções públicas, a escravatura, a vingança, o “olho por olho, dente por dente”, a “passagem pelo fio da espada” de todos os habitantes da cidade conquistada… Todas tradições muito, mas mesmo muito, antigas.
Claro que, e antecipando a crítica de demagogia, é sempre possível seleccionar outras tantas tradições muito respeitáveis, mas que apenas se reconhecem como respeitáveis por comparação com as anteriores porque se avaliam com critérios morais de hoje. Isto é, porque se escolhem pelas suas características e não porque se aceitam como costume, sem critério.
A escolha é o princípio, o ponto de partida, da acção racional. O argumento da superioridade da razão sobre a tradição é pois também o argumento da superioridade das escolhas pensadas e livres sobre o conformismo sem critérios do costume.