Autoeuropa: a tradição já não é o que era
Pense-se o que se pensar das negociações da Autoeuropa e do seus resultados, vale a pena registar um conjunto de factos.
1. Quer dentro, quer, sobretudo, fora de Portugal, o sector automóvel era, tradicionalmente, um dos sectores mais estruturados das relações laborais, um dos sectores em que os modelos "fordistas" mais se desenvolveram. Mas já há décadas que assim não é, como mostram dois exemplos, escolhidos entre muitos outros possíveis.
O primeiro é o da "semana de quatro dias", criada por acordo na VW alemã para salvar, pelo sacrifício parcial da remuneração global, emprego industrial alemão que a administração ameaçava exportar. O segundo é o da GM Europa: tendo começado por surpreender os sindicatos europeus com o anúncio de que cortaria os custos de produção em 500 M€ ao ano e reduziria 12.000 empregos no conjunto da Europa entre 2005 e 2006, aquela empresas acabou por assinar um acordo-quadro europeu, cujas dificuldades de aplicação na fábrica da Azambujaconstituiu uma excepção europeia e deu, à data, lugar a várias notícias na comunicação social portuguesa.
Quer estes exemplos, quer as notícias dos últimos dias sobre a Autoeuropa mostram que - fora como dentro de Portugal - (1) os sindicatos estão hoje frequentemente sujeitos a fortíssimas pressões e que (2) as empresas são hoje capazes de os forçar a negociar sob a coacção da ameaça de desemprego.
2. No caso português, há, porém, um elemento adicional a ponderar: é que - quer no caso da Azambuja, quer no caso de Palmela - o papel dos sindicatos foi, pelo menos, em termos públicos, relativamente periférico. Ora, este facto questiona directamente quer (1) um modelo constitucional e legal que atribui aos sindicatos o monopólio da negociação colectiva, mesmo ao nível de empresa, quer (2) a adequação das estratégias sindicais usadas na situações de facto criadas na Azambuja e em Palmela e a manifesta dificuldade revelada de influenciarem o desenvolvimento dos acontecimentos: numa empresa de natureza estratégica, as relações laborais são protagonizadas, pelo lado dos trabalhadores, pela Comissão de Trabalhadores e não pelos sindicatos.
Ora, esta situação - que é, pelo menos, "alegal"- implica que, qualquer que seja a legislação vigente, os meios legalmente institucionalizados de gestão dos conflitos colectivos de trabalho não podem ser formalmente accionados, nem pelos trabalhadores, nem pela administração da empresa, nem pelo Governo. Em consequência, as relações laborais na Autoeuropa estão remetidas, pelo menos no plano formal, para o domínio da liberdade de negociação e, por isso mesmo, regidas pelos princípios do voluntarismo.
3. Desde que esta “corrida para baixo” das condições de trabalho se tornou económica e politicamente viável, as empresas supra-nacionais, tornaram-se, ipso-facto, capazes de fazer condicionar os empregos de amanhã às condições de trabalho de hoje e de amanhã. E isso significa - goste-se ou não, e eu sou dos que não gostam! – a questão do emprego indissociável dos custos e das condições de trabalho. Dito de outro modo: pôs as questões da flexibilidade e da flexigurança no núcleo duro das relações laborais, em Portugal, como na Alemanha...
4. Mais do que julgar os comportamentos da Administração, da Comissão de Trabalhadores e dos próprios trabalhadores da Autoeuropa, se não erro, são (1) as insuficiências de regulação social europeia e internacional, (2) o sistema de relações laborais que temos em Portugal e (3) as estratégias dos interlocutores sociais que foram postos em causa pela decisão dos trabalhadores de rejeitarem o compromisso que lhes foi proposto em resultado das negociações tidas entre a Administração e da Comissão de Trabalhadores.
5. Goste-se ou não - e eu sou, repito, dos que não gostam! - enquanto não for possível alterar a actual dinâmica do capitalismo, é para desafios desafios desta monta que é preciso encontrar respostas.