terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

BSS

Um dos problemas fundamentais na reacção de diversos grupos e estados islâmicos às caricaturas de Maomé, foi a demonstração da incapacidade em distinguir entre actos individuais e actos colectivos, que caracterizei como “excesso de comunitarismo”. O mesmo erro está ainda presente quando, por reacção à reacção, se transforma em réu o conjunto do mundo islâmico. Como assinalava o Hugo Mendes, em comentário ao meu “Comunidades” (de 12 de Fevereiro), convém evitar, na crítica à reacção de origem islâmica, as “cadeias de ‘representação simbólica’ entre elementos pertencentes a grupos, organizações ou países”.

1. Essas cadeias estão ainda frequentemente presentes quando se critica a crítica liberal à reacção, de origem islâmica, às caricaturas. Levada ao extremo, essa crítica coloca-se do ponto de vista do “excesso de comunitarismo” que recusa a distinção entre um jornal dinamarquês e “os dinamarqueses”, reificando entidades como o Ocidente ou a Europa a quem atribui culpas na construção histórica das condições justificadoras da reacção de origem islâmica.
É o caso, por exemplo, de Boaventura Sousa Santos quando, na Visão de 16 de Fevereiro, argumenta que “o mundo islâmico exterior não se vê forçado a reagir segundo os códigos de reacção da Europa, até porque a Europa das caricaturas o caracteriza como incapaz de o fazer”. Só que a “Europa das caricaturas” não é entidade actuante que faça caricaturas mas um espaço de regras sociais em que é possível fazer todas as caricaturas sob responsabilidade individual. E é esse espaço de regras liberal que se defende quando se recusa qualquer simetria entre caricaturistas e manifestantes islâmicos, não os actos concretos de quaisquer caricaturistas.

2. Porém, que Boaventura Sousa Santos relegue para segundo plano a defesa da ordem liberal quando esta é atacada não surpreende. Como não surpreende a sua menorização do valor do universalismo em que assenta essa ordem liberal quando afirma que “os universalismos da Europa das caricaturas (incluindo o da liberdade de expressão) sempre foram falsos e só foram accionados quando conveio. Ao mesmo tempo, os mesmos países que garantiam os direitos aos trabalhadores europeus sujeitavam os trabalhadores coloniais ao trabalho forçado”. O que Boaventura Sousa Santos parece esquecer é que o valor do universalismo não só não passa a falso quando não aplicado, como a sua não aplicação apenas pode ser contestada com eficácia por referência a esse mesmo universalismo. Ou seja, a assimetria na aplicação dos universalismos pode e tem sido corrigida pela sistemática reivindicação da sua maior generalização, nunca pela negação do princípio. Nelson Mandela percebeu-o, Boaventura não, mas, uma vez mais, não admira.

3. Um comentário final. Argumenta ainda Boaventura Sousa Santos que “o mundo islâmico exterior só conhece da Europa e dos seus aliados a guerra da agressão, a pilhagem dos recursos naturais, a demonização da sua cultura, a inacção ante o terrorismo de Estado de Israel, a humilhação diária nos aeroportos e universidades europeias.” É falso. Nele se conhecem, também, os antibióticos, os automóveis, os aviões, as telecomunicações, até o nuclear. Isto é, nele se conhecem e procuram com afinco os produtos tecnológicos da modernidade. Que estes se difundam com muita mais facilidade do que os contextos sociais que os permitem inventar e produzir, bem como muitas das invenções imateriais da modernidade, em geral, é parte do problema, não do capital de queixa.