terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

Estudo e profissão: equívocos

O último número da revista de economia do Público das segundas-feiras, a Dia D de 27 de Fevereiro, inclui uma reportagem intitulada “Fora de curso”. O tema, que surge recorrentemente na imprensa, trata das chamadas desadequações entre formação superior e profissão. Os lugares-comuns e equívocos que a propósito costumam ser enunciados estão todos presentes.

Primeiro equívoco: um curso superior habilita o seu titular para uma profissão específica. Errado. Em geral um curso superior fornece e credencia formação numa área mais ou menos especializada, não competências profissionais especializadas. Isto é, em regra um curso superior não habilita para nenhum emprego mesmo quando é um requisito para esse emprego. Entre licenciatura e empregabilidade há uma relação positiva, não uma passadeira vermelha.

Segundo equívoco: quando um licenciado não arranja emprego na sua área, a formação que obteve não serve para nada. Duplamente errado.
Errado, em primeiro lugar, porque não há, para a maioria das profissões, uma área e só uma área específica de profissionalização adequada à rendibilização das competências obtidas com uma licenciatura. Por exemplo, na reportagem da Dia D define-se como “emprego para o qual está habilitada” uma licenciada em história a “investigação ou ensino de história”. É obviamente uma delimitação muito restritiva das possibilidades de profissionalização de alguém com formação em história, que incluem hoje áreas tão diversas como o turismo ou a edição (para dar apenas dois exemplos).
Errado, em segundo lugar, porque a formação é um ganho em si para o próprio e para a sua capacidade de trabalho em geral. Quando se estuda aprende-se não só conhecimentos variados mas também (diga o Nuno Crato o que disser) competências gerais que podem ser mobilizadas nos mais variados domínios, independentemente dos conteúdos da actividade realizada nesse domínio. Uma população activa mais qualificada poderá por isso qualificar sempre o desempenho de actividades antes desqualificadas, aumentando a produtividade dessas actividades.

Terceiro equívoco: todo o licenciado deveria poder obter colocação qualificada no mercado de trabalho. Errado, pois nem todos os licenciados valem o mesmo, ou não seria necessário classificar o resultado final da sua aprendizagem. Como não valem o mesmo todas as escolas e universidades. Sem querer pôr em causa o valor dos recém-licenciados referidos na reportagem, não é possível deixar de reparar que todos têm média inferior a 14 (qualificações apenas suficientes) e nenhum frequentou escolas ou universidades de referência na sua área. E só por demagogia se poderá considerar irrelevante a qualidade institucional e pessoal da formação de cada licenciado para a qualidade da sua inserção profissional.

Quarto equívoco (e citando directamente da reportagem): “não há mercado para tantos diplomas”. Há. Isto é, há mercado para os diplomas de hoje e para muitos mais desde que se considere que a relação entre formação superior e profissionalização é menos directa do que por vezes se pensa e que não é imediata. De facto, surpreende também que na reportagem se considere como problema a não qualificação imediata da profissionalização de um recém-licenciado. Todos os casos retratados são de pessoas com idades entre os 24 e os 27 anos, em início de inserção profissional e, portanto, com uma enorme margem de mobilidade e de progressão. Uma carreira profissional constrói-se ao longo de anos, não é oferecida de bandeja a quem acaba de obter um diploma.

Quinto equívoco: é na universidade que se esgota a formação para a profissionalização. Não é, e ainda bem. Se um curso superior preparasse para uma profissão específica em função de um caderno de encargos bem determinado correria o risco de fornecer formações permanentemente desadequadas das procuras no mercado de trabalho, dado o tempo “longo” dos currículos (três a cinco anos) quando comparado com o tempo cada vez mais “curto” das mutações tecnoeconómicas que estão subjacentes à procura de qualificações no mercado de trabalho. [Para se perceber bem o que está em causa neste equívoco sugiro a leitura não de um ensaio técnico mas de uma obra de ficção: o conto “Profissão” de Isaac Azimov, incluído em Nove Amanhãs (publicado pela primeira vez em Portugal pela Vega em 1979)]. Uma boa formação superior inicial é pois uma formação técnico-científica não especializada que permita, com experiência e formação profissional específicas regulares a adaptação às procuras específicas do mercado de trabalho. Experiência e formação que competem tanto às entidades empregadoras, privadas ou públicas, como às instituições de ensino.

Estes equívocos têm que ser sistematicamente assinalados pois têm consequências nefastas: sobrevalorizam a dimensão profissionalizante da aprendizagem em relação aos objectivos cognitivos desta, desvalorizam a necessidade de construção de relações entre formação e profissionalização por licenciados e empregadores e subestimam as consequências das diferenças de qualidade dos percursos e instituições nas oportunidades de profissionalização.