domingo, 26 de fevereiro de 2006

Os pontos nos i’s

Parece que o argumento de Pacheco Pereira usado pelo Filipe a propósito do “inimigo interno” tem prolongamento dentro do Canhoto. Mas há limites para a amplitude da divergência no âmbito de um mesmo projecto. E a propósito do “Looney Left”, é mesmo necessário colocar os pontos nos i’s…

1. É verdade que o New Labour chegou ao poder depois de se “ver livre” do poder dos sindicatos. Conviria no entanto esclarecer que esse poder nada tinha a ver com o poder dos sindicatos, hoje, em Portugal — os quais, nomeadamente, não ajudaram a fundar o PS e não elegem nem nunca elegeram, que se saiba, a direcção do PS ou de qualquer outro partido do “arco governamental”.
Como conviria clarificar que o problema do sindicalismo em Portugal passa menos pela amplitude do seu poder e mais pela qualidade dos seus programas e protagonismos, bem como pelo grau da sua autonomia política.
O sindicalismo português até poderá estar envelhecido nas suas lideranças e programas e enfermar de um défice de autonomia. Mas o que daí concluímos é que é indispensável a sua reforma, a qual, constituindo um problema dos sindicalistas, condiciona o desenvolvimento da cidadania social e da governabilidade; não concluímos que seja de aproveitar para lhe dar a estocada final.
Em rigor, se há, à esquerda, um problema sério com o sindicalismo, esse problema é o da perda global de poder e influência autónomos dos sindicatos no mundo do trabalho, não o do excesso de poder e influência autónomos. Que nessa morte lenta algum estrebuchar cause mossa é facto que não deveria surpreender e conduzir a interpretações enviesadas.
Pontos nos i’s, portanto. Reformar os sindicatos para que estes re-ganhem, em novos moldes, poder autónomo no mundo do trabalho é para nós tão desejável quanto indesejável é “vermo-nos livres dos sindicatos”.

2. É também verdade que o excesso de rigidez na protecção do trabalho tem efeitos perversos. Mas só no discurso neoliberal mais elementar é que “dificultar os despedimentos significa menos competitividade e mais desemprego”: nem os factos, nem sequer a actual doutrina da OCDE vão por aí. Expliquemo-nos.
O excesso de rigidez laboral poderá ter como contrapartida o florescimento das formas mais precárias da relação laboral, dualizando fortemente o mercado de trabalho e diminuindo, globalmente, a eficácia da sua regulação. Nada de muito original, aliás. O mesmo acontece quando, por exemplo, se rigidificam em excesso as condições da imigração legal — proliferam então as formas irregulares de imigração, diminuindo em lugar de aumentar a capacidade pública para regular com eficácia o fenómeno. Poderá pois ser necessário corrigir eventuais rigidificações da legislação laboral em matéria de despedimentos. Porém, conviria, nessa eventualidade, esclarecer melhor os termos dessas eventuais correcções. Em cima da mesa não poderá estar nunca, e apenas, a troca entre segurança no emprego e criação de emprego. Como já se referiu em vários textos aqui no Canhoto, a equação inclui ainda, pelo menos, formação profissional e protecção social do desemprego.
Pontos nos i’s, portanto. Reformar os termos da relação laboral para ganhar tanto em competitividade como em formas de regulação efectiva do mundo do trabalho que favoreçam a correcção das desigualdades induzidas pelo mercado é para nós tão desejável quanto indesejável é a simples “individualização” da relação laboral.

3. E pronto, o resto são questões menores, embora, já agora, fosse preferível usar outras metáforas que não as apostas dos empresários para medir a “maioria absoluta” do PS, ou não esquecer que em tempos passados não foi só Tony Benn que “foi visto […] a tomar chá com Saddam”.
Pontos nos i's, portanto.

ass.: António Dornelas e Rui Pena Pires