sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006

O(s) princípio(s) da história

1. Como seria de prever, um conservador indeferiu o pedido de casamento apresentado há alguns dias por duas mulheres. Limitou-se, e bem, a aplicar o que lhe diz o código civil. (Mal de nós se os conservadores se atrevessem a fazer, no exercício da sua profissão, leituras interpretativas do texto constitucional.)
Mas se nesta sede a história fica por aqui, noutras (nomeadamente judiciais) será necessariamente diferente. Correrá muita tinta, e não faltarão bases "legalistas" para tentar fugir ao óbvio: o espírito e objectivo expresso da última revisão constitucional. O argumento de Jorge Miranda, citado pelo Rui Pena Pires, é um bom exemplo do que poderá ser um ensaio de leitura conservadora da questão.
A fraqueza desta tese defensiva é, no entanto, óbvia: lá que o famoso artigo 13o da lei das leis do nosso ordenamento jurídico existe é um facto. E não foi nele introduzida, pelos legisladores, uma referência explícita à questões da orientacão sexual por acaso. Ou para que agora possamos dar-nos ao luxo de a ignorar ou de a ler com um âmbito limitado, vedando-lhe aplicabilidade a esferas fundamentais da vida social - como a familiar.

2. São conhecidos os efeitos que pode ter a luta jurídica que "Teresa e Helena" se preparam para iniciar. Por um lado, maior visibilidade mediática e, com toda a probabilidade, uma vitória no fim do longo processo que se avizinha. Por qualquer das vias, abrem-se novos horizontes para o casamento entre pessoas do mesmo sexo. É, em si, um ganho.
Seria, no entanto, muito negativo que qualquer viragem nestas questões tivesse como base uma decisão judicial. Melhor que nada, é verdade. Mas se o poder político não o perceber a tempo, teremos perdido uma excelente oportunidade de, por escolha civilizacional, permitir o aumento das escolhas partilhadas de adultos livres (sem quaisquer consequências para terceiros) e assim modernizar o ordenamento jurídico para, no que verdadeiramente importa, melhorar a nossa cultura de acolhimento da diferenca do outro dentro da nossa sociedade. Do "outro" tornado nós, bem entendido, dando-lhe os direitos que poucos acham questionáveis para os que hoje são os insiders do acesso ao casamento.
O que está em causa, por isso, mais do que o direito à diferenca é o direito ao reconhecimento social da diferenca. Esta é a verdadeira questão. E não é de somenos, porque não diz respeito apenas aos homossexuais, diz respeito a todos.

3. O principal combate a travar por ambos os lados da contenda não será, creio, o jurídico. Neste campo, a vantagem tenderá inevitavelmente, com o tempo, para os defensores da abertura do casamento a pessoas do mesmo sexo. Mesmo os argumentos "legalistas" em sentido contrário servirão sobretudo como instrumentos do combate cultural que não é de hoje, mas que se vai intensificar.
A este respeito, o texto de Pacheco Pereira no Abrupto denunciando o conservadorismo dos homossexuais que desejam casar (!) como argumento contra a abertura da lei (?), é um excelente exemplo de como se tentará a todo o custo transferir para os outros o ónus da questão. Não me lembro de ver o Abrupto denunciar o "neo-conservadorismo" dos heterossexuais que desejam casar (e casam); e estudos vários têm demonstrado que hoje em dia uma parte significativa das pessoas que casam fazem-no quer por questões utilitárias, de acesso aos direitos sociais que lhe estão associados, quer pelo reconhecimento social proporcionado pelo casamento. A este respeito, os homossexuais não serão diferentes; e, se o forem, não será seguramente valorizarem menos o casamento...
Seja como for, o post de Pacheco Pereira, e outros que recorram a argumentários ou expedientes semelhantes para introduzir ruído, têm pelo menos um mérito. Ao tentar subverter o debate que está em cima da mesa, desviando-o para nebulosas que procuram iludir o essencial, acabam na verdade por fazer o inverso. Porque recentram o debate no que está verdadeiramente em causa muito para além dos argumentos jurídicos, que no fundo são apenas instrumentais: os princípios da sociedade em que vivemos, e o imenso debate cultural que lhes está subjacente.

4. Assim sendo, esta questão será sempre um bom palco para testar o liberalismo e os eventuais limites dos tão auto-proclamados liberais. Nos casos em que ainda não disse, o tempo o dirá.

5. Uma última nota sobre a forma como os principais partidos se estão, para já, a posicionar sobre esta questão.
O porta-voz do PS considerou o tema "não prioritário", afirmando que o tema será discutido internamente quando vier a propósito. Pois bem, vem agora claramente a propósito. Seja como for, um tema em que muito provavelmente estará em causa uma questão constitucional não pode ser nunca considerada como simplesmente "não prioritária" por um partido como o PS. Sobretudo quando estão em causa as questões da diferenca e da inclusão, tão decisivos no ideário socialista moderno. (Aliás, se por mais não fosse, a declaracão de princípios pela qual o partido se deve reger, é também suficientemente clara sobre a recusa de derivas discriminatórias motivadas por razões de orientacão sexual.)
Já no PSD a história é outra. Pela voz de Pedro Duarte, o PSD assumiu, como seria de esperar, uma postura muito fechada. Sem gostar especialmente da palavra, atrevo-me a usála aqui: retrógrada. "A sociedade portuguesa precisa de muita coisa menos disto"; "o código civil não é discriminatório"; a extensão do casamento a pessoas do mesmo sexo "não é pertinente", porque já há a possibilidade de união de facto. E mais: poderia mesmo "criar rupturas na sociedade portuguesa". Aliás, alterar o "conceito" de casamento é uma atitude "provocatória".
Como se vê, e ao contrário do que se lia no Público de quarta-feira , PS e PSD não "partilham" visões a este respeito. Antes pelo contrário. O PSD surge, como noutras matérias morais, claramente associado a um conservadorismo fundamentado numa sedimentada base ideológica; o PS parece esperar para ver. Mas será positivo, e um bom sinal, se não esperar demais.