Revelação
1. O debate sobre as relações entre liberdade de imprensa e religião não é novo. Como destacava Pacheco Pereira no Público de hoje (09/02/2006), “convém não esquecer que a nossa liberdade foi conquistada exactamente aqui, contra a intolerância religiosa”.
Em Inglaterra, coincidindo com os dias da crise, o Governo de Blair perdia (por apenas um voto) a votação, na generalidade, de um proposta de lei que criminalizava a ridicularização da religião e dos símbolos religiosos. Nos meses que antecederam essa votação, foram várias as vozes que se opuseram publicamente ao projecto governamental. Um dos mais conhecidos opositores da lei foi Rowan Atkinson, mais conhecido enquanto o actor que protagonizou Mr. Bean na televisão, que defendeu a liberdade de expressão sobre matérias religiosas em sessão no Parlamento inglês
“All religions deserve equal freedom of worship and practice but none deserve the right to freedom from criticism. […] In my opinion, freedom of expression is being allowed to cause trouble, or create discomfort, or offence, as long as your words or behaviour are not threatening.”
e em conferência de imprensa depois dessa sessão:
“All this points to the promotion of the idea that there should be a right not to be offended when in my view, the right to offend is far more important than any right not to be offended. The right to ridicule is far more important to society than any right not to be ridiculed simply because one represents openness, the other represents oppression.”
2. De volta ao debate actual, é possível encontar no Open Democracy dois textos sobre a relação entre liberdade de expressão e religião que dificilmente poderiam ser mais contraditórios.
No primeiro, “The right to caricature God…and his prophets” (07/02/2006), Doug Ireland sustenta a posição liberal. Lembrando uma célebre frase de Salman Rushdie (“o fundamentalismo não é sobre religião, é sobre poder”), defende o direito de caricaturar deuses e profetas, critica a auto-censura dos média, em especial nos EUA, e destaca os objectivos políticos prosseguidos pela “reacção” islâmica:
“What's really going on here is an attempt to extend to the west the kind of theocratic censorship that Islamic fundamentalists enforce by intimidation or law in countries from Morocco and Algeria to Iran, Afghanistan, and Pakistan. There is a long and rich tradition in western countries of caricatures of religious figures and leaders, including Jesus himself. […] The western media outlets that have refused to reproduce any of the cartoons — especially those in the United States — have just handed the theocratic primitives a victory, and thus increased their power. Instead, let's hear a loud cheer for irreverence — the intelligent person's response to the mad fantasies of all revealed religions.”
No segundo, “The liberal dilemma: integration or vilification?” (08/02/2006), Tariq Modood defende a restrição da liberdade de expressão, argumentando que há situações em que essa liberdade pode comprometer seriamente a integração multicultural:
“If the goal is multicultural integration, then we must curb anti-Muslim racism and exercise restraint in the uses of freedom directed against religious people.”
Esta revelação sobre as zonas de incompatibilidade entre multiculturalismo e liberalismo só surpreenderá quem tiver andado distraído. E as principais incompatibilidades são fáceis de identificar: o relativismo que amordaça o debate crítico entre ideias concorrentes e o excesso de comunitarismo que sufoca as escolhas individuais. O mesmo excesso de comunitarismo que, na crise actual, permite formular exigências de responsabilização de toda uma colectividade por actos praticados por um dos seus membros (independentemente da maior ou menor justeza ou legalidade desses actos).
P.S. E, claro, também subscrevo Como uma liberdade.