Arrastão, parte II
Lembram-se de há um ano? Imagens indiscutíveis provavam um mega arrastão em Carcavelos. Até se ter percebido que “o arrastão nunca existiu”… Ontem, este triste episódio da nossa história televisiva recente teve sequela com uma pseudo reportagem da RTP sobre a violência na escola.
Espionagem televisiva
Em primeiro lugar o método. Colocar uma câmara escondida durante semanas ou meses numa escola para filmar aulas sem que alunos e pais o saibam é método inaceitável. Já li, num comentário ao texto do Daniel Oliveira no Arrastão que, “neste caso, os fins justificam os meios”. Que dizer então em caso de ameaça terrorista? Bush agradece. Só que não justificam, e se fizer precedente todo o assunto grave poderá, a partir de agora, passar a ser resolvido da mesma maneira: com uma câmara escondida e a cedência das imagens à televisão. Como o fez a CP o ano passado, lembram-se?
A montagem que anula o tempo
O problema das imagens é que elas naturalizam com demasiada facilidade o que é menos evidente do que parece. Um exemplo: imaginemos que as câmaras de vigilância de um supermercado filmaram, por dia, dois pequenos roubos no estabelecimento; imaginemos ainda que, depois, alguém montou apenas as imagens dos roubos cometidos num mês ou dois, construindo um filme de 20 minutos, incluindo repetições das cenas mais “vivas” e a aceleração de algumas sequências. Pois é, vai ficar com a percepção de que aquele supermercado está a saque, de que o ritmo do perigo é aí sufocante. O vigilante que teve que gramar com horas e horas de visionamento de nada viu outro filme.
O jogo das escondidas
Para tentar salvar a face, a RTP escondeu identidade e rosto de alunos e professores. Dos alunos, porém, a voz foi menos filtrada, bem como a cor da pele. Escondendo a identidade individual, a RTP deixou claro que os alunos envolvidos (e no fim entrevistados) seriam maioritariamente negros. Em consequência, a culpa sem rosto dos actos registados deixou de ser individual e passou a ser colectiva. Objectivamente, a isso chama-se racismo. Escondeu também a identidade da escola, anulando o contexto. E sem contexto o caso deixou de ser individual, passou a geral. A isso chama-se abuso.
Vovó Metralha
Depois das imagens, o “debate”. Fátima Bonifácio, que já se tinha notabilizado no mesmo canal pela defesa da “Europa branca”, acusa rispidamente sem hesitações: os miúdos são delinquentes e têm pais delinquentes. No fim, um dos miúdos ouvidos pela RTP lá confessa que em casa lhe condenam o comportamento. Em casa, onde vive com a avó e um primo.
E, por fim, os factos
Pelo que se viu, actos de total indisciplina (mas o que acontece no resto do tempo e com outros professores?), perante a passividade dos professores em causa (por saberem que estavam a ser filmados?). Em algumas cenas a indisciplina virou violência, sendo a mais grave, repetida à exaustão, de uma aluna mais velha sobre uma aluna mais nova. Que fazer? Só saberá quem, com legitimidade, souber todas as histórias individuais que a RTP não mostrou.