Com pezinhos de lã (corrigido)
1. A nova proposta de lei sobre os manuais escolares inclui uma norma que tem de ser afinada e aplicada com pinças: refiro-me à que estipula a avaliação prévia dos manuais. De imediato acusada de “censura” pelos que têm interesses no domínio em causa (os editores escolares), a norma é no entanto imprescindível para evitar as situações de facto consumado: as famílias compram um manual, descobre-se que este não tem qualidade e que contém erros, no ano seguinte o editor em causa coloca no mercado um novo manual em substituição do primeiro, que as famílias compram, mas que depois de avaliado revela má qualidade, etc., etc. Nesta dinâmica descontrolada anulam-se inclusive outros aspectos positivos da lei, como os que visam facilitar a transmissão de manuais entre alunos de sucessivas gerações.
2. Quando é anunciado (ver Público de hoje, 14/05, página 13) que a comissão de avaliação dos manuais passará a incluir representação da Comissão para a Igualdade e para os direitos das Mulheres (CIDM), dá-se um tiro nos pés e entrega-se artilharia pesada aos editores que contestam aquela norma legal. E, já agora, com toda a razão. A seguir à CIDM, quem mais estará representado na avaliação dos manuais escolares: a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), para evitar afloramentos racistas ou xenófobos? A Comissão da Liberdade Religiosa (CLR) para garantir o princípio da igualdade religiosa? Ou estes são direitos fundamentais menores?
O objectivo fundamental da avaliação dos manuais deveria ser garantir a sua qualidade pedagógica e técnico-científica, não zelar pelas orientações doutrinárias dos seus conteúdos. Pois é a isto que, quando feito antes, por meios administrativos estatais, se chama, e correctamente, censura. A ser assim, a lei deverá ser mudada, para não permitir equívocos quanto aos seus objectivos e quanto à composição das comissões que criar. Não o permitir explicitamente agora, ou, por interpretação imaginativa, depois de publicada. Se assim não for, será uma má lei.
3. Quer isto dizer que é irrelevante a eventual difusão de preconceitos sexistas, racistas ou religiosos por meio dos manuais? Não. Só que há outros meios de actuação para atacar tal difusão. Nada impede qualquer uma das associações acima referidas de avaliarem, a posteriori, os manuais no seu âmbito de actuação e de emitirem recomendações aos editores e professores, bem como de divulgarem, publicamente, classificações dos manuais penalizando o seu carácter preconceituoso ou, ao invés, destacando o seu conteúdo exemplar. Bem como de puxarem pela cabeça e negociarem com os editores selos de não discriminação a atribuir aos melhores manuais.
4. Nas sociedades democráticas o autoritarismo ataca muitas vezes com pezinhos de lã. Frequentemente sem intenção, apenas em consequência de uma tendência para aproveitar o caminho mais fácil para atingir um qualquer objectivo “bondoso”.
Uma sociedade sem preconceito será uma sociedade melhor. Mas se para a atingir mais depressa tiver que proibir e censurar o preconceito, então prefiro demorar mais tempo a lá chegar.