segunda-feira, 1 de maio de 2006

Vasco Pulido Portugal

1. Uma das mais eficazes e usadas figuras de retórica no discurso político é a antropomorfização das colectividades políticas: “Portugal sabe que…”, “Portugal fez…”, etc. Dá jeito, pois assim se contrabandeiam ideias próprias como ideias colectivas, e assim também se poupam umas quantas chatisses envolvidas na trabalhosa verificação empírica do que se afirma.
No último sábado foi Vasco Pulido Valente, no Público: “o mal português, pouco a pouco sentido e reconhecido por quase toda a gente, é o colectivo fracasso do país.” Ou ainda: “foi preciso o ‘25 de Abril’ e o advento de um regime democrático para Portugal acreditar outra vez que tinha um destino: a ‘Europa’, o desenvolvimento, um módico de igualdade. Bastaram 30 anos para desfazer a ilusão. O país que aí está, trabalha, sofre e paga é, como de costume, um fracasso.

2. Há problemas em Portugal? Claro. Há necessidade de mudanças urgentes no país? Claro, isto é, claro em minha opinião. Mas convém não minimizar o que de novo aconteceu nas três últimas décadas. Como convém não falar pelo país porque sim. Aposto que quem falar com as pessoas do tal “país” que trabalha terá uma surpresa: os ditos cujos são capazes de não saberem que o “país é um fracasso”. Mas aposto, não o afirmo, pois em rigor não sei o que pensa “quase toda a gente”. O que sei é que numa das reportagens televisivas que há dois anos assinalaram o 30.º aniversário do 25 de Abril, um repórter insistia com uma velhota sobre as deficiências do atendimento no serviço nacional de saúde. Ao que esta respondia que sim senhor, mas que era melhor do que no seu tempo, quando não conseguia sequer ter acesso a um hospital.
O desprezo por estas mudanças, que beneficiaram, e beneficiam, a maioria da população portuguesa desde 1974, só é possível para quem fala por Portugal sem falar com e pelos portugueses.