O triunfo da aritmética
O Governo e os parceiros sociais continuam hoje a discutir as medidas propostas para a segurança social. Concordo com muitas delas. Naturalmente, discordo de algumas. Pude já expressar a visão geral que tenho - e é muito positiva - sobre a lógica de actuação do Governo nesta matéria.
Mas há uma de que discordo por razões que têm a ver com modos de entender a função da política: a introdução de uma fórmula automática para os aumentos anuais de pensões.
Este mecanismo defendido há muito, com base numa retórica tecnocrática, por alguns políticos do sector como Fernando Ribeiro Mendes, é um sintoma tardio da visão original do séc. XIX dos sistemas bismarckianos de pensões de reforma, que as vêem como meros seguros que se distinguem dos outros apenas por serem públicos, obrigatórios e em regime de repartição. É pouco provável que seja contrariada na concertação social, onde essa lógica bismarckiana, por definição, tende a ser predominante. Se tivesse estado em vigor em Portugal nos últimos anos teria impedido os aumentos diferenciados de pensões que permitiram melhorar um pouco o carácter redistributivo - ainda muito insuficiente - das pensões e retirar muitas famílias de idosos de situações aflitivas de pobreza. Se estivesse em vigor no Reino Unido nos últimos anos teria impedido um dos eixos centrais de reforma das pensões de Blair e Brown, os quais, apesar de não conseguirem diminuir a desigualdade no país, melhoraram significativamente o nível de vida dos idosos.
No estado actual do país, esta medida passa de forma praticamente consensual porque é ancorada na desconfiança da política e dos políticos, reduzidos à categoria de irresponsáveis quanto à gestão do sistema de pensões. Essa atitude garante popularidade mas diminui democraticamente os governos e o Parlamento. Pelas mãos de um governo socialista e de um Ministro que tenho a certeza absoluta que tem a melhor das intenções prepara-se uma derrota, para mim inesperada, da responsabilidade política às mãos da aritmética.
Num país em que os idosos continuam a ser um dos grupos mais expostos à pobreza, tal caminho vai significar uma de três coisas. Ou alivia a pressão sobre os governos para reduzir a pobreza dos idosos quando voltarem a ter recursos para o fazer , agora "desresponsabilizados" pela lei. Ou, em alternativa, os encoraja a ir, à portuguesa, por caminhos laterais, ínvios ou paralelos, acumulando medidas compensadoras da sua própria auto-inibição. Ou revogam a lei que agora se auto-impõem, o que Gordon Brown seguramente faria se chegasse a Primeiro-Ministro em Portugal.