Crueldade e critérios
1. Foi notícia recente a inclusão de questões sobre violência doméstica num questionário do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) aplicado a estudantes do 7.º ao 12.º anos, em escolas públicas de todo o país. Como se sabe, eram colocadas aos jovens perguntas como “O teu pai, ou substituto, bate (dá pontapés, murros, puxa cabelos, etc.) à tua mãe?” As hipóteses de resposta eram: “sempre, quase sempre, muitas vezes, às vezes, poucas vezes, nunca”. Perante a polémica, o presidente do IDT declarou que “embora os temas que suscitaram a polémica em torno deste estudo sejam relevantes para a análise do fenómeno, o IDT reconhece que a sua formulação não foi a adequada, tendo em conta o leque de idades dos destinatários e o valor da intimidade da família. O IDT lamenta a perturbação causada e assume o compromisso de não tratar a informação relacionada com este grupo de questões. O IDT assegurou-se também do integral cumprimento das regras de segredo estatístico, dado que o questionário era anónimo e impossível de personalizar.”
2. O problema, porém, tem pouco a ver com a relevância dos temas ou com o tratamento dos dados. O que está em causa é a brutalidade das perguntas, que não deviam, em caso algum, ter sido colocadas. O que está em causa é a total insensibilidade de quem acha que se pode perguntar tudo a toda a gente, não percebendo que, num trabalho de inquérito, há limites deontológicos que são muito claros, um dos quais é a interdição de causar mal a quem se interroga. Ora, a pergunta acima citada, bem como outras do mesmo inquérito, são de uma crueldade imperdoável. Lembrei-me, quando as li, de reportagem antiga da RTP1 em que se perguntava a uma criança timorense, com uns seis anos de idade, se tinha notícias do pai, ausente na guerrilha, e, em particular: “sabes se ele está vivo?”! No trabalho técnico-científico, como nos média, nem todas as perguntas são legítimas, só surpreendendo que isso não seja óbvio.
3. Lendo a notícia no Expresso, lembrei-me também de uma sessão de cinema a que tinha ido com o meu filho mais novo há já muitos anos. O filme (não recordo o título) era “tipo indiana jones”, com algumas cenas de violência que me pareceram excessivas dada a classificação “para todos”. Na fila da frente, um casal mais idoso assistia a tudo calmamente, até que, no final, quando herói e heroína, apaixonados claro, se beijam, vestidos, caindo para a cama abraçados (mudando aqui a cena), o velhote resmunga, indignado: “não há direito, num filme para crianças”. Critérios, pensei, critérios que me vieram à memória quando, depois de ler a notícia do Expresso, regressei ao título: “Alunos de 12 anos inquiridos sobre a vida sexual dos pais”. É verdade que o malfadado inquérito incluía, ainda, a inaceitável pergunta “o teu pai, ou substituto, obriga a fazer vida sexual com ele contra a vontade dela?” Só me custa perceber, uma vez mais, a lógica da hierarquização do disparate na reacção ao mesmo.