Do inferno cheio de boas intenções
1. Como prometido, de volta ao Terceiro Relatório sobre Portugal da ECRI, Comissão contra o Racismo e a Intolerância do Conselho da Europa (e não pela última vez). Hoje, para comentar a insistência na necessidade de recolha de dados sobre a “origem racial ou étnica”, considerada indispensável para “medir a extensão das manifestações de racismo e de discriminação racial” (parágrafos 99, 100 e 101). Neste domínio, a ECRI não está só: a Comissão Europeia, no seu comunicado 643 de 2006, e no seguimento das recomendações do European Monitoring Centre on Racism and Xenophobia (EUMC), tinha já dado guarida à tese segundo a qual “a falta de dados étnicos dificulta uma monitorização adequada da efectividade da legislação anti-discriminação”. E está certa, esta afirmação. Como está, também, a seguinte afirmação: “a falta de câmaras de videovigilância nas casas dos cidadãos europeus dificulta uma monitorização adequada da efectividade da legislação anti-violência doméstica”.
2. Ou seja, afirmar que com informação de um certo tipo se combatem com mais eficácia comportamentos indesejados não significa, por si só, que essa informação deva ser recolhida. Tal é óbvio no que se refere à instalação de sistemas de videovigiância em casas privadas. É verdade que na sua ausência a violência doméstica poderá continuar, em muitos casos, a gozar de impunidade, mas também é verdade que os custos da medida são inaceitáveis, ao colocarem em causa, radicalmente, o direito à intimidade. No caso dos dados sobre a “origem racial ou étnica”, temos que fazer o mesmo balanço.
3. Como já o disse e repeti aqui no Canhoto, o racismo e a xenofobia não começam no tratamento discriminatório dos “outros” mas na definição de alguém como “outro”. Recolher dados sobre a origem racial de alguém supõe a existência de raças (de onde se é originário). Ora, no dia em que aceitarmos este pressuposto daremos um enorme passo atrás no combate ao racismo, o qual só pode ter sucesso se recusarmos a pertinência social das classificações culturais em função das características físicas das pessoas. Neste domínio, o caminho da ECRI, como no passado o do EUMC, é o da institucionalização da racialização, comprometendo totalmente os princípios do universalismo que permitiram inventar o anti-racismo. É caminho condenado a prazo, pois reforça a percepção de alguém como outro, pertencente a um grupo específico, com base na cor da pele ou outro traço físico. Ou seja, reforça os fundamentos cognitivos do racismo.
4. Como assinalou um dos maiores sociólogos de sempre, “é comum argumentar-se, em regra, que percepcionamos os outros como pertencendo a outros grupos porque a cor da sua pele é diferente. Seria mais rigoroso perguntarmo-nos como foi possível que, neste mundo, se criasse o hábito de percepcionar pessoas com outra cor da pele como pertencendo a outro grupo” [Norbert Elias (1977, 1994), “Introduction: a theoretical essay on established and outsider relations”, em Norbert Elias e John L. Scotson, The Established and the Outsiders. A Sociological Enquiry into Community Problems, Londres, Sage, pp. xv-lii].