segunda-feira, 9 de abril de 2007

Dados são dados!

1. Há muitos, muitos anos, jovem recém-licenciado, assisti a uma situação que me marcaria para o resto da vida profissional. Dois outros recém licenciados propunha-se realizar um projecto para explicar uma variação anómala na sazonalidade dos dados sobre a natalidade de um concelho do interior do país: o pico da natalidade situar-se-ia, nesse concelho, em Janeiro, descoincidindo do observado para todos os outros concelhos do Continente. Ouvindo as propostas entusiastas dos dois jovens investigadores, um dos veteranos da demografia portuguesa afirmou cortante: “o vosso projecto não existe; os dados estão errados, verifiquem-nos”. Admirados, os jovens, a quem nunca tinha ocorrido semelhante possibilidade (erro dos dados) resistiram, mas acabaram por seguir o conselho e investigar não o comportamento demográfico no concelho em causa, mas o registo dos dados demográficos nesse concelho. Resultado: os dados estavam mesmo errados pois, por “questões administrativas” (isto é, por férias irregulares a cavalo do ano novo), os nascimentos da segunda quinzena de Dezembro eram adicionados aos nascimentos ocorridos em Janeiro. O pico de nascimentos observado era pois um efeito de registo, não de especificidade demográfica local.

2. Qualquer aprendiz de investigador acaba assim por aprender que a fiabilidade dos dados tem que ser verificada antes que deles se possa retirar qualquer conclusão. Por uma razão simples: os dados são produzidos, não emergem por geração espontânea; são produzidos com técnicas de observação e registo que podem ser mal usadas ou inadequadas para observar o fenómeno em causa. No que se refere aos dados sobre questões sociais, muitos são o resultado agregado de registos administrativos, sujeitos a todo o tipo de erros sistemáticos ou ocasionais; outros, ainda, resultam da resposta a inquéritos, pontuais ou periódicos, que, sobretudo quando são autopreenchidos (isto é, preenchidos pelos inquiridos na ausência do inquiridor), estão sujeitos a erros e distorções por ignorância de quem responde ou por não resposta do inquirido.

3. Neste domínio da acção profissional, de utilização dos “dados”, jornalista e investigador têm, ou é suposto que tenham, preocupações e competências semelhantes. Por isso, qualquer aprendiz de jornalismo, e não apenas de investigação, sabe que não só as fontes devem ser verificadas como a fiabilidade dos dados deve ser testada. Porém, Ricardo Dias Felner (RDF) deve partir do princípio de que “dados são dados”, não se discutem. Só assim, isto é, só por falta de competência profissional, é possível explicar as suspeições que lançou em artigo publicado no Público de 4 de Abril passado, com base na leitura de um “estudo do Ministério do Ensino Superior [que] revela que em 1996 não houve nenhum aluno diplomado em Engenharia Civil, pela Universidade Independente (UnI)”. Isto apesar de saber, porque o cita, que os dados usados naquele estudo têm por base “a resposta dos estabelecimentos de ensino superior ao inquérito estatístico anual realizado pelo OCES”. A qualidade da resposta da UnI ao questionário do OCES é considerada irrelevante e a ausência de dados sobre diplomados em Engenharia Civil é definida, sem mais, como facto irrefutável, tão irrefutável que pode ser usado para marcar posição numa controvérsia pública. E descoberto o “facto” através do “dado”, quem se quiser defender que faça o trabalho que competia inicialmente ao jornalista (e, em geral, a quem acusa): verificar e, eventualmente contestar, a fiabilidade dos dados.
Ou é muita incompetência ou muita irresponsabilidade!!
(Isto porque não acredito que se trate de conspiração de RDF.)