segunda-feira, 26 de maio de 2008

Da desigualdade: explicações & propostas

Nos últimos dias tem-se falado de desigualdade tanto no plano da explicação da dita como no da apresentação de propostas de políticas com ela relacionadas.

1. Portugal é desigual porque é atrasado, proclama José Manuel Fernandes no Público, e, continua, só deixará de o ser quando “o velho Portugal se extinguir e o padrão de uma economia moderna se generalizar”. A tese pode ser tentadora, mas é falsa. A riqueza pode dar jeito quando se trata de distribuir, mas o aumento da riqueza não gera necessariamente redução da desigualdade: veja-se o caso dos EUA, que é muito mais rico do que Portugal e, também, bem mais desigual. A questão da desigualdade é política pura, o seu incremento ou diminuição depende de escolhas políticas.

2. É verdade que a fraca qualificação dos activos mais idosos dificulta a redução, nesta geração, das taxas de pobreza em Portugal. No entanto, convém dizer que essas taxas não são, quando medidas antes das transferências sociais do Estado, muito maiores do que as verificadas, por exemplo, na Suécia. O que, neste domínio, faz a diferença maior entre Portugal e a Suécia é sobretudo o nível das transferências sociais do Estado para os mais pobres e a consequente redução da pobreza depois dessas transferências. E como o dinheiro não cai do céu, só é possível aquele nível de prestações sociais na Suécia porque a carga fiscal é neste país bem mais elevada do que em Portugal. Portanto, e em resumo, menos desigualdade exige mais políticas sociais, o que, por sua vez, exige mais impostos. Todos os que querem menos impostos hoje não querem, nem hoje nem amanhã, menos desigualdade.

3. Em rigor, a desigualdade em Portugal é maior do que a desigualdade de rendimentos medida nas estatísticas do Eurostat. Primeiro, porque à desigualdade de rendimentos deve ser adicionada a desigualdade patrimonial; segundo, porque a desigualdade de rendimentos medida é a desigualdade dos rendimentos declarados. Ou seja, as desigualdades de rendimento seriam ainda maiores se fosse considerado o valor dos pagamentos em espécie com que as empresas remuneram, parcialmente, os seus quadros. Note-se que estes pagamentos influenciam duplamente a desigualdade, pois agravam a desigualdade real para além do que é medido e retiram base de incidência às políticas fiscais. Um primeiro teste à vontade real de combate à desigualdade poderia passar por aqui: quem está disposto a tratar os pagamentos em espécie como rendimentos sujeitos à taxa de IRC mais alta em vigor (tipo despesas confidenciais)?

4. Como sublinha Krugman em The Conscience of a Liberal, o crescimento e “enriquecimento” das classes médias constitui a melhor expressão do sucesso das políticas de redução da desigualdade. Por isso não faz sentido proclamar o combate à desigualdade e, simultaneamente, propor, por exemplo, o fim da universalidade do sistema nacional de saúde. Acabar com parte da redistribuição que tornou possível esse sistema e distinguir entre um sistema de saúde privado florescente e um sistema de saúde público definhado e reservado para pobres polariza socialmente e entala as classes médias entre uma qualidade que lhe custa a pagar e uma falta de qualidade que recusam. Ainda por cima, e como o mostra o exemplo dos EUA, este sistema dual pode acabar por custar uma fatia maior da riqueza nacional.

5. Quando Manuela Ferreira Leite propõe o fim daquela universalidade, propõe também encostar o PSD às tendências neoliberais, colocando-se, independentemente de todas as proclamações que possa fazer, de fora do combate à desigualdade. E aqui está outro teste fácil de fazer: quem está disposto a apostar num sistema nacional de saúde universal e qualificado como âncora da redução das desigualdades?