sábado, 24 de maio de 2008

Quem quer mesmo reduzir as desigualdades?

1. A desigualdade é um assunto sério de mais para se poder tolerar que, depois de ter estado longo tempo arredado das modas políticas, seja agora usado como arma de arremesso em campanhas políticas e mediáticas que, nalguns casos, alimentam os vários populismos de conveniência.
2. Portugal tem, contra a vontade de alguns e por acção e omissão de outros, elevadíssimos níveis de desigualdade e de pobreza, incluindo entre os que trabalham. Isso é questão bem estabelecida e, infelizmente, até agora por resolver. Mas é também uma questão que não terá solução a não ser que a vontade política seja sustentada ao longo do tempo e se baseie em avaliações da situação com um mínimo de rigor.
3. Sejamos, portanto, muito claros: o problema nem é novo, nem foi resolvido por qualquer governo. Mas, ainda assim, não é verdade que os ciclos políticos tenham tratado a desigualdade do mesmo modo. Foi nos Governos Guterres que se lançou o pré-primário, o rendimento mínimo garantido (RMG) e os aumentos das prestações sociais com diferenciação positiva para os mais pobres. Foi nos Governos Barroso-Bagão Félix que a tentativa de esvaziar o RMG se confrontou com os vetos de Jorge Sampaio, que o Código do Trabalho de 2003 reduziu drasticamente a cobertura da contratação colectiva, que o salário mínimo nacional subiu menos do que as remunerações contratadas e que os trabalhadores com rendimentos mais elevados se voltaram a distanciar da média nacional.
4. Para não falar de outras fontes, citarei apenas dois exemplos recentes em que eu próprio trabalhei: quer no Livro Verde sobre as Relações Laborais (pp. 147-167) , quer no Livro Branco das Relações Laborais (pp. 37-45) estão sumariados os termos em que a questão se põe em Portugal, quer quanto à desigualdade de rendimentos entre trabalhadores, quer quanto à desigualdade de género, quer quanto aos efeitos negativos dos emprego atípico sobre as remunerações.
5. A desigualdade não é, nem um problema exclusivamente português, nem se resume à desigualdade de rendimentos, nem, menos ainda, esta se restringe à desigualdade entre salários. Como se pode ver, por exemplo, aqui a desigualdade capital/trabalho agravou-se na generalidade dos países europeus, com os trabalhadores a receberem, desde o início dos anos 80, uma parte decrescente da riqueza criada. Nos EUA, como se pode ver, por exemplo, aqui os aumentos de rendimentos foram tanto maiores quanto mais elevados são os rendimentos.
6. Pode-se fazer mais? Pode-se e deve-se. Mas, uma vez mais, sejamos claros: sem melhores e mais intensas políticas públicas sociais, não se pode reduzir nem o número de pobres, nem a severidade da pobreza. Mas isso implica, para além de vontade e critérios de prioridade política, mais recursos públicos, o que não parece possível com larga parte do espaço público e parlamentar a reclamar a toda a hora reduções da carga fiscal, quando não a fazer a defesa implícita da evasão fiscal.
7. Se, para combater a pobreza, é indispensável aumentar o alcance das políticas públicas sociais, isso não basta. Precisamos de políticas de rendimentos que protejam os baixos salários e os salários da metade inferior dos rendimentos. O que significa, para além de subidas do salário mínimo nacional superiores ao crescimento dos salários colectivamente contratados, um acordo entre parceiros sociais para reduzir sustentadamente o wage drift da contratação colectiva e os leques salariais.
8. E precisamos de políticas de educação e de saúde que corrijam as desigualdades de oportunidades que se herdam com o nascimento em famílias com níveis também desiguais de acesso à saúde, à escolarização e à cultura. O que significa que tem de ser a escola dar o que nem todas as famílias não podem dar – inglês, escola a tempo inteiro, etc. - , que tem de ser o sistema público a dar “novas oportunidades” de escolarização e formação e por aí adiante, que tem de ser o sistema público a assegurar o acesso a cuidados de saúde de qualidade e que esse acesso não pode ser condicionado pela posição social que se ocupa ou, pior, se ocupa por que nela se nasceu.
9. Basta? Não, se se quiser reduzir a desigualdade, não basta. Se se quiser mesmo reduzir a desigualdade, é preciso que as políticas fiscais corrijam mais vincadamente os rendimentos da metade superior dos rendimentos e cumpram os objectivos de redistribuição a que se opõem os arautos da flat rate, da redução da progressividade dos impostos e da tolerância com a evasão fiscal., mesmo que dissimulada em automóveis de serviço e outros fringe benefits que por aí abundam.
10. Sempre quero ver quantos, de entre os que, recente e subitamente, “descobriram” o escândalo da desigualdade, estão dispostos a bater-se por políticas públicas mais generosas no combate à pobreza, por políticas de educação e de saúde socialmente não discriminatórias, por políticas de regulação dos mercados de trabalho favoráveis ao crescimento salarial real e à redução da desigualdade. E, como não vivemos sozinhos no mundo, quantos desses estão dispostos a baterem-se por estes valores, quer em Portugal, quer na União Europeia, quer no sistema das Nações Unidas. Mas se, contrariamente ao que suspeito, forem mais e vierem de mais famílias políticas do que nas últimas décadas, tanto melhor. Um erro de avaliação deve sempre corrigir-se. E um erro desses, corrige-se com muito prazer.