O voto e a razão
A propósito da vitória do “não” no referendo irlandês renasceram, sobretudo à esquerda, os discursos inflamados sobre a razão do povo sempre que o povo se pode exprimir livremente. Curiosamente, os mesmos argumentos não se fizeram ouvir quando, em Roma, os neofascistas ganharam as eleições locais, exprimindo-se livremente numa escolha aberta. Prosseguindo nesta via, o editorial do Público de hoje refere-se, em tom de indignação crítica, a reacções que caracteriza com a frase “quando o voto popular é um problema”. Ora bem, do voto popular podem resultar problemas.
Deve discutir-se criticamente a relação entre os centros europeus de decisão e os cidadãos europeus. Deve discutir-se criticamente o modo de decisão na reforma europeia, nomeadamente a relutância em tornar esse processo de decisão mais aberto ao escrutínio público. O que não se deve fazer, porém, é endeusar a decisão popular quando dá jeito, como deu, no caso do referendo irlandês, aos que à esquerda militam no anti-europeísmo, e assobiar para o lado quando essa mesma decisão popular acolhe, como em Roma, as propostas mais radicalmente reaccionárias.
A democracia não é um método de escolha das soluções mais correctas, mas o melhor modo até hoje inventado para impedir a tirania no exercício do poder político. É pois necessário respeitar o resultado do referendo na Irlanda não porque ele seja mais correcto do que a sua alternativa mas porque só assim se preservam as regras do jogo que salvaguardam a liberdade das escolhas políticas. Mas também por isso é necessário continuar a discutir substantivamente a razão da reforma (que não é o mesmo que a sua aprovação), a qual, razão, não deriva do voto mas do saldo das suas vantagens e desvantagens, apurado num ambiente de amplo debate público e racional.
Infelizmente, a razão teve lugar de pouco destaque no referendo irlandês, substituída que foi vezes de mais pelo que de mais irracional e assassino existe na cultura moderna: o nacionalismo. Foi aliás esclarecedor ver em destaque nas comemorações da vitória do “não” um dos símbolos irlandeses do nacionalismo e de todos os seus defeitos maiores: Gary Adams.