sexta-feira, 14 de novembro de 2008

A avaliação de desempenho e a reforma da escola pública

Se vivessemos num país com um sistema público de ensino eficaz e democrático, teriamos elevados níveis de escolarização, bons resultados escolares e boas performances médias nos testes internacionais, por parte de alunos de diferentes origens socioeconómicas. Ora, o país real em que vivemos não é assim. Temos baixos níveis de escolarização, más performances intenacionais e um sistema educativo com forte selectividade social, que repele uma parte dos seus alunos e desiste de outra. Uma das mais visíveis sobrevivências do elitismo em educação vem à tona na facilidade com que se desvaloriza tudo o que melhore resultados escolares, colocando-lhe o ferrete do "facilitismo" ou do "trabalho para as estatísticas".
Um governo de esquerda tem o dever de não desistir de uma escola pública democrática e de qualidade. O que lhe pode impôr escolhas dificeis e acções impopulares. Terá, concerteza, que encorajar, compelir as escolas a trabalharem com os seus alunos mais difíceis, a ensiná-los e não a reprová-los, abandonando-os. Terá, também, que criar condições favoráveis a que as escolas sejam amigas das famílias trabalhadoras, nos horários, nos serviços que oferecem, na acção social que fazem. Mas essas mudanças não se fazem sem dor. Em Portugal provocaram, inequivocamente, sobrecarga dos professores.
Em menos de uma legislatura, o ritmo de trabalho nas escolas intensificou-se muito significativamente. Ainda para mais essa intensificação de ritmos ocorreu ao mesmo tempo em que houve congelamentos de progressão nas carreiras e perda de poder de compra dos salários, como ocorreu com os restantes funcionários públicos.
As tensões que derivariam sempre de tal situação agravaram-se com a acção política no sentido de que, para mudar resultados escolares, não basta ajustar curricula e tempos lectivos, é necessário intervir sobre a natureza organizativa da escola.
A escola democrática é uma entidade que presta num certo território um serviço público e é em função desse objectivo que deve organizar-se. Nos anos 70 muitos acreditaram que a melhor forma de o fazer - a gestão democrática das escolas - era concebê-la como uma comunidade de iguais, um grupo de pares regido por regras eleitorais e em que a diferenciação se faria apenas pela antiguidade e o carisma de alguns. Muito cedo o modelo começou a abrir brechas e tem que ser substituido por outro.
Este Governo apostou desde o primeiro dia na transição rápida da escola "grupo de pares" para uma organização hierarquizada para prestar um serviço às famílias. Deu novos poderes aos conselhos executivos e reconheceu-os como interlocutores da definição de orientações e prioridades. Concebeu um novo sistema de carreiras em que a antiguidade não é a chave quase única da promoção. Agiu para que, dentro da escola, os professores não sejam todos iguais, haja hierarquias funcionais, em função de concursos de acesso não universal e de avaliações de desempenho.
Tanta mudança em tão pouco tempo é sempre difícil de gerir e corre o risco de gerar coligações negativas, isto é, de que estejam lado a lado, protestando pessoas que, se debatessem entre si se oporiam firmemente umas a outras.
Tudo isto ocorre, para mais, num contexto em que os sindicatos estão fragilizados porque são dominados por uma geração de professores que os mais novos não respeitam necessariamente e em que não se reconhecem acriticamente. Isto, evidentemente, sem falar da ligação entre as direcções sindicais e as agendas político-partidárias que, por serem inteiramente legítimas, não são seguramente neutras.
Neste quadro, tudo convergiu para os gigantescos protestos contra o modelo de avaliação de desempenho dos professores. Com efeito, pela primeira vez, a introdução do princípio hierárquico se reflecte na relação entre colegas, potenciando tensões que é mais fácil libertar para fora do contexto próximo de interacção. Do mesmo modo, a resistência passiva se pode transformar com facilidade em excesso de zelo no cumprimento do modelo, como parece ocorrer com a definição das famosas fichas de avaliação. E, talvez não seja dispicendo, o protesto não acarreta a defesa do indefensável (como a carreira cilíndrica) e não se reduz à mal vista no contexto actual, mas real, preocupação com a degradação dos salários.
Aqui chegados, a avaliação dos professores faz lembrar o processo de co-incineração. Todos defendem que o problema existe e todos dizem que o querem resolver. A táctica de obstrução consiste na mobilização de base contra o avanço do processo para que a paralização permita ganhar força. Não me custa a imaginar que alguém venha daqui a poucos dias propôr uma comissão de sábios para avaliar o processo de avaliação, quiçá por resolução a discutir na Assembleia da República...

Pessoalmente, só vejo uma alternativa: negociar com os interlocutores que querem melhorar o modelo de avaliação sem o interromper e vencer os outros.

Sobretudo não se pode perder de vista o essencial: a escola pública não está bem e há trinta e cinco anos que procura tornar-se, com sucesso muito relativo, democrática. Tudo o que se possa fazer para aumentar o seu sucesso nesta missão vale a pena. Ninguém tem o monopólio da razão, mas também não me parece que haja direito constitucional à passividade.