Aperto de mãos também é ritual
1. Ontem, nas rádios, António Cluny contestava a mudança do tribunal da Boa Hora para o Parque das Nações, clamando contra a falta de densidade simbólica do novo, e moderno, edifício. Hoje, no Público, Boaventura Sousa Santos aprofunda esta argumentação: “Há sempre um elemento mágico: no fundo, no fundo, trata-se de uma distinção entre o bem e o mal, é um acto ético”. Assemelha-se a um acto religioso, prossegue, e “todo o acto religioso tem um ritual. É um procedimento muito rígido, sem variações, para permitir a legitimidade do acto: se não for cumprido o ritual, o acto não vale.”
2. Há, nestes argumentos, vários pontos de controvérsia. Em primeiro lugar, a invocação ética a propósito do papel dos tribunais é arrepiante. Uma coisa é o fundamento ético último da lei, outra a confusão entre julgamento da legalidade dos actos, função dos tribunais, e julgamento do conteúdo ético dos actos, o qual só numa sociedade totalitária será função desses mesmos tribunais.
3. Em segundo lugar, a repetida associação entre ritual e cerimonial, ou entre ritual e religiosidade ou magia, serve sobretudo para legitimar, por referência à tradição, o conteúdo majestático desses mesmos rituais, ignorando a existência de outros tipos de ritual igualmente eficazes mas com conteúdos diferentes: mais seculares ainda que deferentes. Como se sabe, a carga simbólica e emocional dos rituais é extremamente variável. Mais, alguns dos rituais comuns servem fundamentalmente para rotinizar interacções com um mínimo de investimento emocional e simbólico: caso das fórmulas de saudação como o banal aperto de mão.
4. O que está pois em causa quando se discutem os novos espaços da justiça não é a oposição entre ritual e não ritual mas o tipo de ritual que deve caracterizar uma administração democrática, secular e moderna da justiça. Porém, para os que desvalorizam a ideia liberal de controlo do poder do Estado sobre os indivíduos, deve ser liminarmente afastada a simples possibilidade de questionamento dos rituais que ancoram simbolicamente a administração majestática da justiça. Nomeadamente, eximindo esta do imperativo democrático da dúvida e reforçando, em alternativa, a sua definição como algo de sagrado — que, no entanto, não deixa de ser definição feita por humanos de carne e osso que assim se eximem ao controlo profano dos seus actos.