terça-feira, 14 de junho de 2005

Estigmatização

Um dos possíveis efeitos indesejáveis do “caso do arrastão” é o aprofundamento da estigmatização das populações de origem imigrante residentes em alguns bairros degradados da Grande Lisboa, de que a Cova de Moura é referência paradigmática.
A legitimação da discriminação passa pela estigmatização, isto é, pela construção de uma imagem negativa de quem é definido como “outro”. O modo como opera a estigmatização é há muito conhecido. No ensaio já citado neste blogue (ver “Preconceito”), Norbert Elias explica que a construção da estigmatização envolve a construção da oposição entre a melhor história dos melhores de “nós” e a pior história dos piores dos “outros”, ambas transformadas em representações exemplares do “nós” e dos “outros”: “nós” somos audazes viajantes, os “outros” são perigosos assaltantes, “nós” somos diligentes trabalhadores, os “outros” são desavergonhados vadios…
Note-se que estas imagens nunca são construídas sobre o vazio, mas a partir de processos de selecção de histórias reais e sua transformação em histórias exemplares. Não importa, por exemplo, que haja assaltos a bombas de gasolina praticadas por brancos e por negros, no Norte e no Sul do País. Assalto a bomba de gasolina é uma história que, desde o caso Lídia Franco, caracteriza os gangs de jovens negros da Grande Lisboa… gangs esses que, por sua vez, simbolizam o conjunto da população dos bairros degradados que, bem vistas as coisas, simbolizarão, provavelmente, o conjunto da população negra, seja ela portuguesa ou estrangeira.
E assim se estigmatiza!
O discurso pouco cuidado sobre os guetos corre o risco de desembocar em resultados semelhantes. A referência ao gueto associada, sempre, à delinquência transforma os gangs que integram jovens de um bairro em símbolos do bairro inteiro. Não importa que as primeiras vítimas desses gangs sejam os habitantes das Covas da Moura. Quando alguém é identificado como residente de um “bairro problemático” é identificado, também, como uma provável ameaça, nunca como uma provável vítima.
Ou seja, o gueto naturaliza a estigmatização.
E a estigmatização legitima, porque naturaliza, a discriminação.
Conviria pois que, no discurso político como no mediático, estes efeitos de estigmatização fossem evitados.