segunda-feira, 13 de junho de 2005

Um fascinante herói autoritário

O tradutor de Shakespeare deve ter-se sentido amargurado quando se confrontou, bem vivo, com a morte das suas ideias. O principal autor do PCP, tal qual o conhecemos, deve ter-se sentido desconfortável com a gestão a que ainda assistiu da sua herança. Fossem quais fossem os defeitos do criador, as criaturas não se revelaram à sua altura.
Compreendo o fascínio que o personagem Álvaro Cunhal suscita em meios tão diferentes. Foi um herói, de grande resistência física e psiquíca. Foi um asceta, dedicado acima de tudo o resto às suas causas e às suas criações. Foi um esteta, da sua escola específica, acima da qual, é certo, nunca se elevou, mas que usou com certo brilhantismo e poder de persuasão. Mas foi também um gestor de equilíbrios e um tacticista, capaz de defender o pacto germano-soviético in ilo tempore, de tentar justificar a invasão da Checoslováquia em 1968, de escrever o unitário Rumo à Vitória, de desembarcar em Lisboa falando da ampla unidade dos anti-fascistas e de apoiar os sectarismos mais estranhos; capaz de impulsionar e tirar o gaz ao PREC, quando a independência das ex-colónias já se tinha consumado.
Quando levou o PCP a apoiar o Golpe de Agosto na URSS já o século não era o seu e o seu comunismo tinha perecido. Retirou-se, com sageza, da boca de cena e ignoro até quando "o partido" continuou, de facto, a ser gerido pelo "velho", como lhe chamavam os seus camaradas.
Ele não acreditaria em presságios, como não aceitava que as suas utopias eram só ideias e não verdades científicas, mas é irónico que o nosso último grande político marxista-leninista tenha morrido no dia imediatamente a seguir a Vasco Gonçalves, o militar com quem acertou o relógio do PCP, nos poucos meses em que tentou mandar no país, enquanto o operário que os seus velhos companheiros cooptaram para lhes gerir o património se deslocava às novas pátrias irreais do comunismo, a China e o Vietname em que não há liberdade de associação sindical.
Seja qual for o destino da sua obra não deixará, no entanto, de ser uma das traves-mestras do século XX português.