quarta-feira, 29 de junho de 2005

Medo, mentiras e vídeo

1. Alguns dias após as primeiras notícias sobre o “arrastão de Carcavelos”, o número de jovens envolvidos nos acontecimentos diminuía drasticamente, de centenas para dezenas. Na reportagem publicada na Capital, é o acontecimento de um arrastão, e não apenas o número de membros que o integraram, que é posta em causa. Versão ainda mais afastada das primeiras notícias é a sustentada por alguém que se identifica como Jorge e se apresenta como testemunha, num comentário (de 18/06) ao meu texto intitulado “Na praia de Carcavelos” e publicado neste blogue. Que não houve um mega arrastão envolvendo centenas de jovens é algo que podemos dar já como adquirido. Começam a ter credibilidade suspeitas de que o incidente ocorrido não tenha, pelo menos de início, sido sequer um arrastão.
Várias MENTIRAS nos foram contadas, por negligência nuns casos, deliberadamente noutros.
2. Resultado inquestionável de tudo isto: o MEDO instalou-se, um perigoso medo racializado.
Um medo alimentado posteriormente por imagens de VÍDEO sobre assaltos em comboios na Linha de Sintra. Imagens que perduram independentemente das notícias posteriores sobre a significativa diminuição da criminalidade, naqueles mesmos comboios, durante o último ano. Como perduram as imagens das fotos de Carcavelos onde são visíveis vários jovens negros a correr, sem que seja possível estabelecer qualquer relação de causalidade entre esse comportamento e acontecimentos posteriores… ou anteriores. Mas a chave de leitura foi dada pelas notícias iniciais, pelo que as imagens naturalizam e enfatizam a história do “arrastão”.
3. O MEDO chegou agora ao debate sobre a lei da nacionalidade. Em artigo de opinião publicado ontem (28/06/2005) no DN, Carlos Blanco de Morais usa o medo para argumentar em favor da não alteração da lei: o MEDO da invasão estrangeira, o MEDO do aumento da criminalidade, o MEDO da expansão da extrema-direita.
4. Blanco de Morais assusta com o medo porque os outros argumentos que usa não são fundamentados. Quando argumenta em favor da prudência na mudança dos grandes códigos, e quando enfatiza que a lei da nacionalidade salvaguarda os laços de sangue que teriam constituído a nossa identidade nacional, parece esquecer que, de 1867 a 1981 a lei em vigor se baseava, radicalmente, no direito de solo, não no de sangue. A substituição da lei de 1959 pela de 1981 foi, essa sim, uma ruptura na concepção da nacionalidade historicamente desenvolvida no nosso país.
A ideia de Nação afirmou-se em Portugal com base no direito de solo, não no de sangue.
5. Não é legítimo, ainda, o argumento segundo o qual “as estatísticas desmentem” a ineficácia da lei da nacionalidade na promoção da integração. Em primeiro lugar, porque embora em alguns inquéritos apenas uma pequena minoria de jovens negros com nacionalidade portuguesa se identifiquem “primariamente como portugueses”, também é possível concluir que quem tem a nacionalidade portuguesa se auto-identifica mais como português do que quem tem estatuto de estrangeiro. As duas conclusões dos dados não são mutuamente exclusivas! No caso dos filhos de imigrantes de origem africana, o racismo e não a falta de vontade de integração estará provavelmente na origem dos principais problemas identitários. Cabe-nos escolher se os queremos ampliar ou reduzir em função das escolhas que fizermos em termos de concepção da nacionalidade.
O direito de sangue suporta uma concepção racializada da nação que se encontra nas antípodas de mitos centrais da nossa identidade nacional.
6. É verdade que se fabricarmos estrangeiros com a lei, será sempre possível expulsar aquele pequeníssimo número de jovens da segunda geração que enveredarem por um percurso de delinquência. Mas não para os seus territórios de origem, pois a sua origem é Portugal, onde nasceram, foram educados e, eventualmente, construíram esse percurso. A expulsão, forma velada de deportação, banida felizmente do direito aplicável a nacionais, será sempre feita para uma terra que não é menos estranha por ser a dos seus pais. Como o sabem aqueles americanos de origem portuguesa deportados para os Açores em moldes que, já por mais de uma vez relatados nos média, chocaram a opinião pública. A desumanidade não acontece apenas quando “nos” toca, mas sempre que são violados direitos humanos básicos.
Trazer este tema para o debate sobre a lei constitui, acima de tudo, um acto irresponsável de estigmatização, apresentando como característico de uma população um comportamento que apenas afecta uma parte minoritária dos seus elementos.
7. O grande equívoco, por fim. É errado usar a lei da nacionalidade para controlar os fluxos de imigração. E é demagógico afirmar que o direito de solo “convidará a uma invasão de Portugal por ilegais”: o MEDO, de novo, como argumento. A regulação dos fluxos de imigração é necessária mas não passa pela lei da nacionalidade. Em Portugal não há imigração clandestina significativa, isto é, não há milhares de pessoas a atravessarem ilegalmente a fronteira. Mas há milhares de imigrantes que, entrando legalmente em Portugal (no essencial com vistos de turismo), aqui se fixam ilegalmente, porque aqui arranjam trabalho sem necessidade de procedimentos formais. A existência de um crescente mercado de trabalho informal, não a lei da nacionalidade, é o principal mecanismo de recrutamento de imigrantes: e ninguém virá para Portugal ter filhos se aqui não arranjar trabalho. Fiscalize-se pois o mercado de trabalho para reduzir a fixação de imigrantes; e melhore-se a lei da nacionalidade para melhor integrar os que aqui se fixarem.
Confundir os dois planos é a melhor forma de falhar em ambos os objectivos: o controlo da imigração e a integração dos imigrantes.
8. Conclusão: esperemos que não pairem “sombras sobre a lei da nacionalidade”, sombras dos medos originados por histórias de veracidade controversa e alimentados por imagens equívocas. Ou medo de umas centenas de militantes da extrema-direita (que assim ganhariam sem nada praticamente fazerem!).
Legislar na base do medo era o pior que nos podia acontecer. Como já o foi no passado.