sexta-feira, 3 de junho de 2005

Uma lei estúpida

Segundo Carlo M. Cipolla, numa das obras-primas do humor de todos os tempos, um acto estúpido é aquele que causa prejuízos a terceiros sem que quem o pratica retire dele qualquer ganho, podendo mesmo prejudicar-se gravemente. (1)
A lei da nacionalidade em vigor é um exemplo perfeito de uma lei estúpida: dela resultam prejuízos para os imigrantes estrangeiros e os seus filhos que, com esta lei, vêem a sua cidadania reduzida; mas dela resultam também prejuízos para Portugal, pois a lei promove a desidentificação dos imigrantes com a sociedade portuguesa e, deste modo, fragiliza a coesão social e nacional.
Como referi num outro texto, « no actual quadro jurídico, só por milagre poderá um jovem filho de imigrante nascido em Portugal sentir-se português quando, durante toda a sua infância e juventude, foi definido e tratado como estrangeiro. Essa desidentificação com a sociedade de acolhimento não é cultural nem tem origem cultural, sendo antes política na sua expressão como na sua génese. É a recusa, política, da entrada na colectividade nacional que, como é óbvio, fundamenta, em primeiro lugar, a desidentificação com essa colectividade. //Hoje [quando se fala na possibilidade de revisão da lei da nacionalidade], a escolha é simples: queremos mais e mais imigrantes definidos e autodefinidos como estrangeiros, como “outros” — e que nos definem, também a “nós”, como “outros”? Ou, em alternativa, queremos novos portugueses com uma crescente identificação e lealdade para com uma nação portuguesa mais cosmopolita? »
Manter a lei como está, ou simplesmente maquilhá-la, seria persistir na estupidez. E maquilhar a lei seria, por exemplo, fingir que se mexe no regime da nacionalidade originária concedendo-a apenas à (diminuta) “terceira geração” de imigrantes. Isto é, esperando que, por graça divina, seja possível integrar como portugueses os filhos dos jovens a quem foi recusada a possibilidade de construírem a sua identidade como cidadãos portugueses, obrigando-os a crescer como estrangeiros no país em que nasceram, provavelmente no único país que conheceram.
Os estrangeiros não migrantes da chamada “segunda geração” não são, porém, destituídos de identidade, antes têm tendência a construir uma identidade alternativa, em grande parte por oposição à identidade nacional que lhes recusaram. E será essa identidade alternativa que transmitirão aos filhos, a tal “terceira geração”. Esta crescerá pois num ambiente de socialização já profundamente marcado por processos de etnicização que não foram transportados pelos seus avós, na já longínqua migração para terras portuguesas, mas construídos sobre a recusa da partilha identitária, ainda hoje vivida pelos seus pais.

Como também diz Cipolla, « …os não estúpidos esquecem-se constantemente que, em qualquer momento, lugar e situação, tratar e/ou associar-se com indivíduos estúpidos revela-se, infalivelmente, um erro que se paga muito caro. » Citação que, hoje, sexta-feira dia 3 de Junho, não se aplica apenas ao acto de uma eventual cosmética da lei da nacionalidade…

(1) Carlo M. Cipolla, “As leis fundamentais da estupidez humana”, em Allegro ma non Troppo, Oeiras, Celta, 1993.
http://www.eumed.net/cursecon/economistas/Cipolla.htm