Do sofrimento inútil
De regresso de férias. E de regresso também o acesso aos comentários.
1. Em entrevista ao Notícias Magazine de 21 de Agosto, Rui Marques, Alto-Comissário Adjunto para a Imigração e Minorias Étnicas durante os governos da coligação PSD-CDS, conclui publicamente, agora, que a política de imigração seguida por esses governos bloqueou a imigração legal em Portugal, o que, em contrapartida, e objectivamente, estimulou a imigração ilegal. Hoje (29/8), no Público, é Jarmela Palos, novo director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que questiona a eficácia e a bondade das políticas de admissão de imigrantes restritivas actualmente em vigor.
A importante e bem-vinda declaração do director do SEF não surpreende, conhecidas que são as suas posições no passado sobre os objectivos e modos de regulação da imigração. Esperemos que sejam ouvidas pelos responsáveis governamentais por esta área e se traduzam em alterações legislativas adequadas. Confesso, no entanto, que a experiência vivida com a frustrante alteração minimalista da lei da nacionalidade me deixa céptico.
2. No simples mas notável discurso com que Zapatero apresentou aos deputados a proposta de alteração do Código Civil para remover os obstáculos ao casamento de homossexuais, o primeiro-ministro espanhol enfatizou que “como outras reformas que a precederam, esta lei não produzirá mal algum, […] a sua única consequência será livrar seres humanos de sofrimento inútil. E uma sociedade que livra os seus membros de sofrimento inútil é uma sociedade melhor” (discurso transcrito na íntegra no suplemento “Actual” do Expresso de 13 de Agosto).
Em termos mais gerais, este é o tipo de reforma e de argumento moral defendidos por Barrington Moore num pequeno ensaio, cuja leitura se recomenda, intitulado, na tradução brasileira de 1974 publicada pela Zahar, Reflexões Sobre as Causas da Miséria Humana e Sobre Certos Propósitos Para Eliminá-las (originalmente publicado nos EUA em 1972). Argumentando que à diversidade de modos de conceber a felicidade se opõe a unidade da miséria humana, o autor propõe-nos que centremos os nossos esforços políticos em remover as causas dessa miséria em lugar de nos digladiarmos sobre os contornos da sociedade ideal — eventualmente produzindo assim mais miséria, mais sofrimento. Daí “o pressuposto moral de que a sociedade humana deveria ser organizada de forma a eliminar o sofrimento inútil” (p. 22).
3. Eliminar o sofrimento inútil de quem nasceu e cresceu em Portugal mas é considerado estrangeiro por herança, seria o mínimo a esperar de uma alteração legislativa no domínio da nacionalidade da iniciativa de um governo decente. A clara valorização do direito de solo sobre o direito de sangue na reforma da lei da nacionalidade resultaria, parafraseando Zapatero, numa lei que não produziria mal algum, antes teria como única consequência livrar milhares de crianças de sofrimento inútil.
Ainda estamos a tempo de agir com decência.