Desigualdade e finanças públicas
Fonte: Jean Gadrey, “Inégalités, pauvreté et redistribution”, Alternatives Économiques, 239 (Setembro de 2005), p. 72
O que acontece quando se junta o gráfico divulgado aqui no Canhoto pelo Dornelas no texto “O País desigual” (de 23 de Junho) com o que eu inseri dois dias antes em “Pobres suecos!”? O gráfico publicado no último número da Alternatives Économiques (de Setembro), num artigo intitulado “Inégalités, pauvreté et redistribution” (pp. 70-73), e acima reproduzido.
1. Neste gráfico revela-se a associação entre desigualdade de rendimentos e nível relativo da receita pública (em percentagem do PIB). A conclusão é quase linear, tão forte é a associação estatística entre as duas variáveis — quanto maior a receita pública relativa, menor a desigualdade social. Portugal está, como previsível, num desonroso segundo lugar no eixo da desigualdade (apenas superado, e por pouco, pelos EUA), bem como entre os países da UE com menos receita pública relativa. Para piorar a situação, Portugal é ainda, entre os países com o mesmo nível relativo de (baixa) despesa pública aquele em que é maior a desigualdade. Ou seja, não só temos menos recursos para redistribuir do que os nórdicos, como redistribuimos menos o que temos, por desperdício, do que britânicos e espanhóis.
2. É pois imperioso o combate ao desperdício dos dinheiros públicos, não porque se redistribua muito mas porque é necessária mais redistribuição. O que significa que é necessário racionalizar a despesa para gastar mais com mais legitimidade, recolhendo também mais receita. E este é o problema actual. A naturalização do discurso financeiro da direita corre o risco de nos cegar totalmente em relação à necessidade de… aumentar a receita. Para isso é imperioso, porém, o combate á informalidade na economia, tema do texto inaugural do Canhoto.
3. No discurso da direita, a ênfase é colocada na redução do défice por via da redução da despesa, bem como da contenção, senão mesmo da descida também, da receita. A continuidade ou eventual expansão dos serviços públicos é, por isso, condicionada à generalização do princípio do utilizador-pagador. Essa generalização deve ser radicalmente contestada pela esquerda, e não só porque tende a reproduzir a desigualdade de partida. Deve ser contestada, em primeiro lugar, porque representa a capitulação perante a informalidade económica e a evasão fiscal que impedem o aumento da receita para níveis compatíveis com o esforço necessário de desenvolvimento do país e de combate à pobreza absoluta e relativa. E em segundo lugar, porque qualquer tentativa de introduzir critérios redistributivos num sistema de taxas tende a criar um monstro burocrático de controlo administrativo e a iniciar um ciclo vicioso — pois o controlo dos níveis de rendimento do utilizador será, sempre, limitado pelos níveis de informalidade económica e de evasão fiscais.
4. É ainda necessário desmontar o discurso legitimador de pseudo-equidade social que acompanha, por vezes, a defesa da generalização do princípio do utilizador-pagador. Dizer-se que certos serviços (por exemplo, o ensino superior) devem ser pagos porque servem mais os “ricos” do que os “pobres” é geralmente falacioso. E é-o, por um lado, porque se a base colectável for de facto tendencialmente universal e a colecta fiscal eficaz, os ricos já pagarão mais pelos mesmos serviços do que os pobres que os utilizam. E, por outro lado, porque mesmo quando um serviço público (por exemplo, e outra vez, o ensino superior) é mais utilizado por ricos (ou pelos seus filhos) do que por pobres (ou os seus filhos), isso não significa, por si só, ausência de redistribuição — desde que a desigualdade social no acesso a esse serviço seja menor que a desigualdade de rendimentos, haverá sempre ganhos redistributivos. Por outras palavras, e retomando o exemplo entre parentesis, não será a actual indispensabilidade das propinas no ensino superior, acima de tudo, um indicador do infeliz estado a que chegou em Portugal a redução do universo da colecta fiscal?