Nunca há educação a mais
As notícias sobre a catastrófica fuga de cérebros de Portugal para o estrangeiro continuam a originar todo o tipo de comentários. Admitindo sem reservas os dados do Banco Mundial, apesar das reservas deste mesmo Banco sobre os seus dados, criticou-se, sobretudo, o subdesenvolvimento que não permitiria criar oportunidades para os “nossos jovens”. Faltava o argumento da sobrequalificação: se há fuga de cérebros é porque Portugal produz cérebros a mais. Está feito, por Vasco Pulido Valente (V.P.V.).
O cronista do Público não põe em dúvida os dados divulgados pela imprensa, mesmo se os leu demasiado depressa e conclui, contra os dados, que “[p]ior do que nós... só o Haiti e a Jamaica”. Não é verdade, como não é verdade, por razões que já expliquei noutro texto aqui publicado (“Fuga de cérebros e notícias sem cérebro”), que 20% dos licenciados emigre, mas dá jeito para a construção do extravagante argumento de V.P.V.
Extravagante e irresponsável. A oferta educativa não deve ser limitada em função da procura do mercado de trabalho. Em primeiro lugar, porque a qualificação é um bem em si mesmo, independentemente da sua utilização económica local, a não ser que consideremos positivo o obscurantismo. Em segundo lugar, porque a disponibilidade prévia de potencial mão-de-obra qualificada pode facilitar processos de modernização social e económica mais acelerada, como já aconteceu em Portugal. E, por fim, porque os resultados da educação podem induzir, através da acção de pessoal qualificado sem procura prévia, novos processos de desenvolvimento económico, como também já aconteceu em Portugal.
Não haverá, porém, alguma razão na crítica de V.P.V. ao desperdício que resultaria da, apesar de tudo, alguma emigração de diplomados do ensino superior? Não estaríamos assim a financiar os recursos humanos de terceiros, como os EUA? Sim e não. Num mundo aberto, de liberdade de circulação, que eu prefiro apesar de todos os desperdícios, haverá sempre alguma transferência de recursos humanos dos países mais pobres para os mais ricos. No caso dos EUA, essa transferência não é sequer apenas uma fuga de cérebros, mas antes uma verdadeira “drenagem de cérebros” através do recrutamento activo de diplomados em todo o mundo, assim compensando o funcionamento ineficiente de um sistema educativo básico e secundário fortemente subfinanciado (ao contrário do superior).
Porém, a regra da transferência de qualificações dos países menos desenvolvidos para os mais desenvolvidos também se aplica a Portugal num sentido reverso ao assinalado por V.P.V.: Portugal recebe, todos os anos, imigrantes diplomados oriundos de países mais pobres (e, já agora, também da UE e dos EUA, no âmbito dos processos de investimento estrangeiro e transnacionalização das grandes empresas). E, antecipando já uma reserva óbvia, em alguns casos com sistemas de ensino bastante desenvolvidos, como é o caso dos países do Leste europeu.
O saldo desses movimentos não é conhecido com rigor. É provável que seja negativo para Portugal, mas nunca com a dimensão que tem sido propalada pela imprensa. Mesmo assim, não admite os argumentos de V.P.V., pois nada diz sobre o desenvolvimento absoluto de Portugal, apenas sobre a sua posição relativa no contexto internacional. De outra forma, teríamos que considerar o Reino Unido, que tem na análise do Banco Mundial uma posição muito parecida com a de Portugal, uma “sociedade[…] com um mercado de emprego semi-arcaico”. De facto, o Reino Unido é um dos grandes exportadores de “cérebros” para os EUA; mas é também um dos grandes importadores de cérebros de todo o antigo Império Britânico.
Por fim, V.P.V. não pode dizer, num mesmo texto, que o sistema de ensino superior é, em Portugal, um desastre completo e irremediável e que os diplomados portugueses saem de Portugal porque encontram emprego em países mais desenvolvidos. Ou então, as qualificações requeridas pelos mercados de trabalho dos mais desenvolvidos não são diferentes das requeridas no mercado de trabalho semi-arcaico de Portugal. O que não faz qualquer sentido, nem mesmo para V.P.V., que só pode manter o seu discurso catastrofista sobre Portugal se valorizar o desenvolvimento conseguido por outros.
Para mim, ao contrário de para V.P.V., a moral desta história é simples, e repetida: estudar compensa. Mesmo que possa ser difícil, em alguns momentos, arranjar emprego qualificado no país, estudar aumenta as possibilidades de o arranjar lá fora.