O relatório Sapir e Portugal: a nota de rodapé esquecida
1. O António Dornelas abriu-nos ontem a porta para o relatório Sapir, que tem inspirado alguns dos nossos comentadores. Hoje fui lê-lo. Acho que tem o mérito de ser claro e decidi dedicar alguns posts às opiniões com que fiquei.
2. Neste, concentremo-nos em Portugal. Julgo que serei justo se disser que o que se tem lido por aí (em particular a partir do texto de José Manuel Fernandes no Público, já referido no Canhoto), parte da seguinte linha de leitura: Sapir indica quatro modelos no modelo social europeu, dois sustentáveis (nórdico e anglo-saxónico) e dois ineficientes e carecidos de reforma profunda (continental e meridional); Sapir acha que os modelos ineficientes podem bem evoluir para os eficientes (o mediterrânico para o anglo-saxónico, o continental para o escandinavo); Portugal é um país mediterrânico; o relatório Sapir alimenta a tese da insustentabilidade do modelo social português e a necessidade de nos libertarmos do “nosso” condenado modelo mediterrânico.
3. Em post anterior procurei demonstrar que o debate sobre os modelos é antigo (Sapir, aliás, recorda-o) e mostrar, com o apoio de alguns indicadores fundamentais, que o desempenho do nosso modelo social nos aproxima mais do modelo liberal (o nome original e não eufemístico do modelo anglo-saxónico), do que do mediterrânico (que tenho, aliás, dúvidas que exista), por causa das nossas taxas de emprego e pobreza.
Esta questão não é secundária, pois, como o leitor pode ver, um dos critérios fundamentais da análise de Sapir passa pelos incentivos/desincentivos ao trabalho.
4. O que eu ainda não sabia era que Sapir tinha escrito a seguinte nota de rodapé (na página 9, mesmo em baixo do gráfico que o António Dornelas reproduz e que versa sobre a eficiência e a equidade dos modelos):
The four country groups are far from homogeneous. In particular, Austria seems to be more Nordic than continental, and Portugal more Anglo-Saxon than Mediterranean.
5. Ou seja, escapou aos que sumariamente julgaram o modelo social mediterrânico português que Portugal não é nada tipicamente mediterrânico!
6. A nota de rodapé esquecida diz respeito — e muito — à especificidade portuguesa no contexto do Sul da Europa. Mas, sobretudo, recorda que a agenda de reforma do modelo social mais fácil em Portugal é a liberal, porque trataria apenas de “libertar” algumas peças, cada vez mais pequenas, que ainda faltam, nomeadamente na regulamentação jurídica do trabalho, o aspecto incompleto da velha devoção do Prof. Cavaco Silva por Margareth Tatcher.
7. O desafio é, em meu entender, outro e, neste sentido, o mesmo de Blair — como combater melhor a desigualdade e a pobreza sem refrear a competitividade do país?
Continuo convencido, tal como podemos ler em diferentes textos mais ou menos recentes de Anthony Giddens, o guru do blairismo, que as respostas interessantes residem mais provavelmente nos países competitivos e coesos do que nos países competitivos e socialmente fracturados.
8. Talvez Portugal possa ter em Gordon Brown um aliado no lançamento desta agenda, bem diferente da que José Manuel Fernandes equacionou.