Ainda sobre a EDP
1. Antes do mais, uma democracia saudável e madura exige que a lei seja ou cumprida ou mudada. Ora, num país com os níveis de ilegalidade que se conhecem em Portugal em variadíssimos domínios, tem muito de irónico, se não mesmo de cínico, que alguns silêncios sejam acompanhados do alarde que se verifica noutros casos e com outras personalidades.
2. Mas não vale a pena evitar a questão: mesmo que não haja uma questão legal — e os especialistas parecem de acordo quanto a que ela não existe na questão da EDP — há, a meu ver, uma questão ética. E há, porque a afirmação de que a ética republicana se resume às leis da República postula uma de duas soluções: ou um minimalismo ético, segundo o qual tudo o que não seja interdito seria eticamente equivalente; ou um apelo a uma hiper-regulamentação legislativa, cuja fronteira está bem para lá da fronteira que separa as democracias dos estados totalitários.
3. Parece que Gerard Schroeder não terá cometido nenhuma ilegalidade ao aceitar a posição que agora ocupa na empresa de gás russa. Mas o facto de ter, como Chanceler da RFA, tomado decisões estratégicas sobre essa mesma empresa, mesmo que inteiramente legais e justificadas, não deixa de alimentar interrogações sobre a ligação entre as decisões que tomou como Chanceler, as funções que agora ocupa e as decisões que tomará nas funções que agora exerce.
4. A questão está em que, sendo indispensável começar pelo respeito da legalidade democrática e republicana, isso não basta para que fiquemos dispensados de usar outros critérios — éticos, de transparência, de cortezia, etc. — sem os quais uma vida social razoavelmente pacífica e distendida seria simplesmente impossível. E, menos ainda, que todas as decisões legalmente possíveis sejam eticamente equivalentes.
5. É isto puritanismo? Julgo que não. A meu ver, a democracia não pode nem deve exigir que os titulares de cargos públicos sejam simultaneamente santos, heróis e competentes, ou encerrar o desempenho de funções políticas num gueto de incompatibilidades; mas pode e deve ser rigorosa na avaliação posterior das actuações dos decisores e exigir que os que ocupam funções públicas ou posições de poder — o que inclui bem mais pessoas do que os “políticos” — sejam capazes de não destruir com as suas atitudes esse bem público, tão frágil quanto indispensável, que se chama legitimidade.