quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

Metáforas (e referências)

1. De volta às declarações da Miguel Beleza no último Prós e Contras, em que este põe em causa a validade dos pareceres técnicos sobre a Ota e o TGV, com o argumento de que não são isentos porque foram encomendados pelo Governo. O Paulo tem razão. Aquelas declarações apenas compartilham com o “paradigma Mourinho” a amoralidade dos procedimentos, mas distinguem-se deste por transformarem a “origem da encomenda em critério”.
Ora, e como também refere o Paulo, o essencial do “paradigma Mourinho” é a transformação do resultado em valor. Como se dizia na Pública (do Expresso) de 23 de Dezembro de 2005 (p. 3), “para ele [Mourinho], ganhar é mais importante do que qualquer outra coisa. É um estilo.” Não tem razão o Expresso, é mais do que um estilo, é uma orientação de vida que colide com outras orientações e tem consequências sobre terceiros. E tem essas consequências porque não se impõe limites morais fundamentais, como o seleccionado pela Google na sua actuação empresarial: “O nosso lema é Do not evil. ‘Não faças mal’, e é isso que nos orienta”. Desvaloriza esta proclamação o jornalista da Visão na peça de onde esta citação foi retirada (Visão, 05/01/2006, p. 98), argumentando que tal “não é forçosamente o mesmo que ‘Faz o bem…’”. Pois não, mas é mais do que os limites auto-impostos por muitos em lugares de poder, bem como pela generalidade das organizações, e não só das empresas, incluindo as de comunicação. E, em regra, é preferível como lema geral, pois é mais fácil chegarmos a acordo sobre o mal a evitar do que sobre o bem a promover.
Em resumo, o “paradigma Mourinho”, que tudo aceita como legítimo em nome do critério do sucesso, constitui o exacto oposto da, para mim preferível, orientação defendida na fala de um dos personagens de A Conspiração Contra a América, de Philip Roth: “[o meu pai] contentou-se com fazer de si alguma coisa (em vez de tudo), e fazê-lo sem destroçar as vidas que o rodeavam” (p. 144).

2. Falta-me, pois, uma metáfora adequada sobre a transformação da “origem da encomenda em critério” que, para além do sucesso a qualquer preço valoriza a “rentabilidade do frete” (no sentido em que vulgarmente se fala em “fazer um frete”, no caso de um “frete pago”). Lembrei-me, na busca por essa metáfora, que “fazer o frete” com um parecer pago significa prescindir da autonomia técnica que é suposto sustentar o valor desse parecer. Por analogia, este colpaso da autonomia técnica perante o poder do cliente fez-me lembrar o colapso da autonomia pessoal perante o poder das personalidades fortes retratado no Zelig, de Woody Allen. Mas o personagem do filme de Allen era um pobre diabo que só arranjava problemas com o mimetismo, inclusivé físico, que não conseguia evitar quando perante pessoas com personalidade mais forte, agindo como homem-camaleão.
Ora, quem transforma a “origem da encomenda em critério” ganha, não perde. O “frete pago” não pode pois ser descrito como uma variante do “efeito Zelig”.

3. Lembrei-me, depois, que o critério da encomenda supõe a existência de um mandante, pelo que podia também descrever-se como “efeito Torpedo”. Mas o amoral assassino a soldo da BD de Sanchez Abul e Jordi Bernet é amoral do princípio ao fim, não partilha a duplicidade inerente à “rentabilidade do frete”. De facto, aquela rentabilidade só é possível se a moldagem do parecer técnico aos interesses do mandante concreto coexistir com a valorização da autonomia da competência técnica em relação aos interesses de qualquer mandante em abstracto. Torpedo, por seu lado, fazia o que fazia sem fazer um discurso contrário sobre o seu trabalho: era amoral na encomenda como na vida em geral.
É porque supõem uma duplicidade, que as declarações de Miguel Beleza implicam um problema deontológico. E é por isso também que a metáfora do “efeito Torpedo” é desajustada à natureza do “frete pago”.

4. Chegado aqui desisti e decidi pedir ajuda. Apelo pois aos leitores do Canhoto para que sugiram metáforas adequadas sobre a transformação da “origem da encomenda em critério” no âmbito do “frete pago”. As melhores serão depois divulgadas e uma eleita como “paradigma”. Boas ideias.


Referências

Enrique Sanchez Abuli (texto) e Jordi Bernet (desenho),
Torpedo
, Albin Michel.
Publicada originalmente em Espanha, a série iniciou-se em 1982 na revista Creepy. Tem como personagem central Luca Torelli, aliás Torpedo, emigrante italiano e “pistoleiro profissional da pior espécie, frio, lúgubre, sem piedade, corpo esguio, rosto macilento, gestos indolentes e seguros que não gosta de grandes discursos, que acredita que tudo tem um preço, tanto o amor como a morte” (texto de contra-capa de um dos poucos álbuns da série Torpedo publicados em Portugal pela Editorial Futura).



Woody Allen (1983), Zelig, MGM Home (DVD).
Pseudo-documentário sobre a vida de Leonard Zelig (Woody Allen), o homem-camaleão, que não conseguia deixar de mudar o seu comportamento e aparência, inclusivé física, quando se defrontava com alguém mais poderoso. Se só pudesse escolher um filme de Woody Allen para a minha videoteca ideal, seria provavelmente este.




Philip Roth (2005), A Conspiraçao Contra a America, Lisboa, Dom Quixote.
Escolhido por vários críticos portugueses, na imprensa, como um dos livros do passado ano de 2005, narra o que teria acontecido nos EUA e no mundo se Charles Lindbergh, o célebre aviador de ideias anti-semitas, se tivesse apresentado às eleições em 1940, derrotando Franklin Roosevelt. A ler mesmo que não se interprete como uma metáfora sobre a presidência Bush.