quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

PS: as presidenciais e o Partido

1. Até ao momento, a reacção do PS aos resultados das eleições presidenciais parece ser constituída pelo inevitável cumprimento ao Presidente eleito, o devido agradecimento a Mário Soares, a necessária separação entre a votação para a eleição do PR e a votação em legislativas e os sinais aos dirigentes mais destemperados de que a direcção não embarcará em sanções contra Manuel Alegre.
A direcção do PS tem razão nos quatro pontos.
De nada adianta a crispação que resulta de verificar que as seis décimas acima dos cinquenta por cento demonstram que, ao contrário do que todos julgaram desde muito cedo, Cavaco podia ter sido derrotado.
O agradecimento a Mário Soares só pode pecar por defeito, dado que este aceitou ser entregue a si próprio numa campanha em que foram muitos e variados aqueles a quem a eleição de Cavaco parecia não tirar o sono.
A preservação do Governo de qualquer efeito de contágio da derrota total do PS nas presidenciais é uma questão de bom-senso, até porque, como se calcula, manter esse prestígio é o primeiro passo para que continuem distantes as ameaças potenciais à estabilidade política que o PSD e aquele que até ontem era conhecido por “o outro partido” agora vão procurar criar, com tempo, mas com determinação.
Sancionar Manuel Alegre seria a cereja no bolo dos disparates que foram cometidos e que lhe permitira aparecer aos eleitores como vítima do seu próprio partido e não como militante que não aceitou o resultado do processo democrático de decisão que levou os orgãos partidários em que ele tinha — e continua a ter — assento a tomar uma escolha diferente.
Mas há muitos outros aspectos sobre os quais me parece que deve incidir a análise e que os próximos dias nos deverão ajudar a recordar.

2. O “perfil presidencial” de Cavaco começou a ser construido laboriosamente há dez anos. Muita gente, por distracção, convicção, interesse conjuntural ou manobra lateral nele participou. Cavaco foi tratado com reverência mesmo quando fazia os mais violentos ataques partidários, como fez em questões orçamentais contra António Guterres. Cavaco foi até entronizado como presidenciável pela própria Fundação Mário Soares.
Quem quiser ganhar eleições presidenciais convém que aprenda agora a lição que Cavaco aprendeu com a vitória de Jorge Sampaio há dez anos. Leva tempo a construir um perfil presidencial.

3. Incluo-me nas muitas pessoas do PS que teve durante muito tempo uma primeira escolha como candidato presidencial, António Guterres. Os que não o achavam, presumo, suficientemente socialista, laico e republicano, não podem furtar-se a reflectir sobre o efeito de estreitamento da margem de manobra do PS que resultou, pelo menos parcialmente, da sua actuação.

4. José Sócrates fez toda a campanha eleitoral interna para o PS, pouco mais de um ano antes de eleições presidenciais, a defender um candidato, brandindo aos militantes o ticket beirão Sócrates-Guterres.
Esse ticket não se concretizou. Ignoro porque se enganou Sócrates quando o defendeu tão convictamente e tantas vezes. Acredito que tenham sido acontecimentos posteriores a justificar que o desejo do candidato a Secretário-geral expressava não se concretizasse, mas, para o eleitor, o desejo de Sócrates teria que equivaler uma pré-candidatura.

5. Com a dissolução da AR, o discurso oficial do PS passou a ser de deixar para amanhã a questão presidencial. Não havia pressas e os nomes iam escorrendo lentamente, numa espécie de primárias pelos jornais, em que uns não eram candidatos a candidatos e outros eram desvalorizados por fontes não identificadas.
De modo algum se pode aceitar que a proximidade entre os actos eleitorais justificasse esta atitude. Há dez anos, Guterres venceu legislativas poucos meses antes de Sampaio e correram juntos o risco de tentar ganhar ambas. O que faltou agora?

6. O PS teve um candidato oficial, não é apenas o partido que apoia o governo e a vida política do partido não pode esgotar-se no grupo parlamentar e na administração do Estado. Faltou PS nas eleições autárquicas e voltou a faltar nas presidenciais. Seria um grave erro se constituíssemos o partido em comissão eleitoral de candidatos a primeiro-ministro e matássemos o seu interesse pelos vários tabuleiros em que se jogam as suas causas.
O PS é um partido de projecto, também no poder local, e com causas mobilizadoras da sociedade, também nos domínios da democracia participativa e dos movimentos sociais. Não pode considerar que a sua tarefa está terminada, enquanto partido, quando chega ao Governo. A sua direcção não pode desvalorizar todos os actos que não as eleições legislativas.
Aqui há que não esquecer a lição de Guterres: foi em 1993, com uma vitória autárquica, que começou o mais longo e mais influente ciclo político socialista em Portugal e foi com uma derrota autárquica que acabou.

7. Se é preciso evitar completamente a caça às bruxas, também é preciso reflectir sobre as candidaturas presidenciais e os métodos. Uma boa preparação das decisões teria prevenido a fractura das candidaturas e o que estava em jogo justificava todos os cuidados. No PS tomam-se demasiadas decisões importante em reuniões de uma hora, abertas por um discurso e fechadas por uma salva de palmas. O hábito de assim ser deslegitima as decisões mais graves e fragiliza o partido.
Aliás, só a consciência de que os erros de método não começaram com a decisão de Alegre de anunciar a sua candidatura presidencial depois das decisões dos orgãos democraticamente legítimos do partido é que me leva a defender que o assunto seja enterrado assim. Porque não pode ser banal que alguém que disputa a liderança num dia, no outro se apresente a uma eleição destas contra o partido que queria liderar e isso não tenha nenhuma consequência para ninguém.

8. A consequência de tudo isto foi a eleição de Cavaco Silva. Não vale a pena olhar para trás. Só para a frente. Mas Cavaco Silva é um homem de sorte. O PS e o centro-esquerda deram-lhe tudo: a criação do PRD, então um partido à esquerda do PS fez dele primeiro-ministro com 28% dos votos; a moção de censura aprovada pelo PS e a fractura Soares-Constâncio que se lhe seguiu levaram-no à primeira maioria absoluta; e, agora, todos nós fomos responsáveis pelos 0,6% que fazem com que já seja o Presidente de todos os portugueses.