quinta-feira, 26 de janeiro de 2006

Trade-off

O Público de ontem (25/01/2006) incluía uma crónica de Rui Marques, na página 10, defendendo o direito de voto dos imigrantes em todas as eleições e, na página 11, uma notícia sobre as alterações à Lei da Nacionalidade que será em breve votada no Parlamento. Até graficamente o trade-off proposto era claro: os limites às alterações dos critérios de concessão da nacionalidade portuguesa poderiam ser compensados com uma expansão radical dos critérios de concessão do direito de voto aos estrangeiros residentes em Portugal.

1. Entendamo-nos. A nova Lei da Nacionalidade constitui o primeiro progresso na matéria desde o retrocesso iniciado em 1975. Pela primeira vez são reduzidos os tempos de residência necessários à aquisição da nacionalidade pelos próprios imigrantes ou pelos seus filhos (quando nascidos em Portugal); pela primeira vez é introduzida uma via (a integração escolar) para evitar o excessivo prolongamento dos efeitos da ilegalidade dos pais na exclusão do acesso à nacionalidade pelos filhos; pela primeira vez se criam condições para, a pedido dos pais, eliminar a necessidade de permanência num limbo identitário, até à idade adulta, dos filhos de estrangeiros nascidos em Portugal com direito à nacionalidade portuguesa; pela primeira vez se reforçam, ainda que com alguma timidez, os critérios do direito de solo sobre os do direito de sangue; e pela primeira vez são abolidos os critérios de discriminação em função da nacionalidade que subordinavam a definição da situação imigrante aos “negócios estrangeiros”.
Entendamo-nos ainda sobre a questão dos direitos políticos dos imigrantes. O direito de voto dos imigrantes nas autárquicas facilita a integração destes em Portugal, sobretudo se os actores políticos, e em particular os partidos, usarem a possibilidade assim criada para mobilizarem a participação dos cidadãos estrangeiros residentes em território nacional. Neste domínio, é sobretudo necessário aprofundar o direito existente, removendo a limitadora (e injusta) cláusula constitucional da reciprocidade. O Alto-Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas terá pois a minha inteira solidariedade para, sem reservas, propor, em próxima revisão da Constituição, aquela alteração.

2. Mas desentendamo-nos também: não “compro” o trade-off proposto. E não o “compro” porque sou a favor da solução oposta, isto é, sou favorável a um aprofundamento dos critérios do direito de solo na lei da nacionalidade, por um lado, e à manutenção da relação entre nacionalidade e direitos eleitorais não locais, por outro. São três as razões para tal.
Em primeiro lugar, são mais fortes os efeitos integradores da nacionalidade dos que os que resultam da ampliação dos direitos políticos. E aqui radica um dos meus desacordos fundamentais com a orientação da nova lei. Mesmo quando os seus efeitos, para os imigrantes ou os seus filhos, são positivos (como os que decorrem da ligação entre integração escolar e acesso à nacionalidade), predomina a ideia de que a obtenção da nacionalidade pelos imigrantes ou seus descendentes é um prémio à integração e não, como eu sustento, uma condição para essa integração.
Em segundo lugar, porque quando se estendem os direitos políticos mas se reserva o acesso à nacionalidade reforça-se a definição desta como étnica e instrumentaliza-se a cidadania. Em vez de distinguir tão radicalmente a colectividade política da colectividade nacional é preferível caminhar para uma redefinição da identidade nacional, isto é, para uma crescente definição desta como projecto partilhado num espaço político, linguístico e cultural comum e não como história particularista herdada. Como é preferível, também, associar a expansão dos direitos de cidadania ao desenvolvimento de uma solidariedade colectiva cuja construção fica facilitada quando há partilha de nacionalidade, assim equilibrando direitos e deveres muito para além do plano estritamente jurídico.
E, finalmente, porque com a nacionalidade são menores as ambiguidades que se colocam na efectivação do acesso aos direitos pelos imigrantes e seus descendentes, pois todo o nosso quadro legal está polvilhado de cláusulas restritivas em função da nacionalidade. Inclusive dos direitos políticos: por exemplo, se para um nacional é norma a sincronia entre direitos políticos activos e passivos (eleger e ser eleito) como será com estrangeiros titulares de direitos alargados? Como é mais clara também, já agora, a viabilidade de um alargamento dos critérios de direito de solo à semelhança do que já acontece em muitos outros países, do que a viabilidade de uma expansão de direitos políticos dos estrangeiros que não tem modelo de referência estabilizado que facilite a legitimação da mudança.

3. Do ponto de vista dos imigrantes, esta lei constitui, apesar de tudo, um avanço que deve ser saudado. Constitui, sobretudo, o primeiro passo claro na inversão de uma tendência, de 30 anos, de sistemática redução dos critérios do direito de solo e, consequentemente, de prolongamento do estatuto de estrangeiro da condição migrante. Um passo que, no entanto, não elimina ainda muito sofrimento desnecessário por continuar a sacrificar as condições da integração a critérios de segurança a meu ver inconsequentes.
Mas do ponto de vista nacional é, em parte, uma oportunidade perdida. Ou seja, representa um adiamento perigoso no inadiável processo de reconstrução da Nação em bases mais “crioulas” e, portanto, mais inclusivas. Por isso recuso o trade-off sugerido e continuarei a sustentar a necessidade de mais passos no caminho que começou hoje a ser percorrido.