quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

Casais, pais e filhos

Adivinhava-se o contra-ataque. Jorge Miranda argumenta que há na Constituição vários artigos que ligam o casamento às relações pais-filhos. Logo, conclui o constitucionalista, o casamento envolve a procriação e, portanto, duas pessoas de sexo diferente.

1. Há, desde logo, dois problemas com esta argumentação. Em primeiro lugar, um problema de facto, pois a parentalidade não implica procriação, existindo também na adopção. Em segundo lugar, um problema de lógica, pois o facto de existirem relações entre casamento e parentalidade não significa que essas relações sejam de total dependência recíproca. Ou seja, o facto de a conjugalidade ter efeitos sobre a parentalidade não significa que a ausência da segunda invalide a primeira.

2. Mas o problema mais importante suscitado pelas declarações de Jorge Miranda não é esse. O problema, hoje, é continuar a subsumir a regulação da parentalidade na regulação da conjugalidade. Com o aumento das taxas de divórcio, com o aumento dos nascimentos fora do casamento, com o aumento das famílias recompostas, só será possível regular com eficácia direitos e deveres de pais e filhos se essas normas tiverem autonomia em relação às do casamento. A proposta não é minha nem sequer “deste século”. Encontra-se, por exemplo, no pequeno livro de Giddens sobre a “terceira via”. Vale a pena citar:

Marriage and parenthood have always been thought of as tied together, but in the detraditionalized family, where having a child is an altogether different decision from in the past, the two are becoming disentangled. The proportion of children born outside marriage probably won’t decline, and life-long sexual partnerships will almost certainly become increasingly uncommon. Contractual commitment to a child could thus be separated from marriage, and made by each parent as a binding matter of law, with unmarried and marital fathers having the same rights and the same obligations.

[Anthony Giddens, The Third Way. The Renewal of Social Democracy, Cambridge, Polity Press, 1998, p. 95]