Mau uso das estatísticas
Titula hoje o Diário de Notícias: “Violência doméstica sobe 17% em 2005”. Lendo o artigo deparamos com uma tão subtil quão fundamental diferença: “As denúncias de violência doméstica em 2005, junto da PSP e da GNR, aumentaram 17% em relação a 2004.”
Os dados usados para fazer o artigo não se referem pois a actos de violência doméstica mas a denúncias de actos de violência doméstica. Ora, para que o título estivesse correcto era necessário que o aumento das denúncias correspondesse ao aumento dos actos denunciados. No entanto, é o reverso que poderá estar a acontecer, isto é, ao aumento das denúncias poderá corresponder uma diminuição dos actos denunciados.
Esta é uma situação mais frequente do que se pensa, e tende a acontecer quando um comportamento anteriormente aceite passa a ser condenado de modo generalizado. Quando essa mudança ocorre e tem tradução normativa no plano jurídico, podem aumentar as denúncias de um comportamento e, ao mesmo tempo, diminuir a incidência desse comportamento. É isso que está a acontecer hoje em Portugal no campo da violência doméstica? Não sei. Mas não o sabendo não posso proclamar que está a aumentar a violência doméstica em Portugal com os dados usados na notícia do DN.
Esta questão não é meramente técnica, tem consequências práticas vitais. Se neste momento estivermos já perante uma descoincidência entre a evolução das denúncias de violência doméstica e a evolução dos actos de violência, fazer afirmações em sentido contrário contribui para uma percepção negativa da eficácia da denúncia. O que poderá, por sua vez, contribui perversamente para a retoma do crescimento da violência pelo efeito de desmotivação das vítimas para se queixarem. Somando-se à desmotivação que é já induzida pela percepção da falta de consequências das queixas salientada, no mesmo artigo, por Elza Pais.