O que nos distingue
No sábado, o Ivan copiou o essencial. Hoje, republicamos o texto de Fernanda Câncio na íntegra:
«A discussão sobre os cartoons tem, como já muito se comentou, a virtualidade de baralhar as clássicas hostes de esquerda e direita, agrupando de um e outro lado da argumentação gente que, na aparência, nada partilha em termos de ideário. Será, como alguns dizem, a divisão entre os liberais e os outros? Ou apenas uma bizarra coincidência de pose, sem encontro nos fundamentos?
Quando um partido como o CDS - que defendeu a inclusão da "herança cristã" no tratado constitucional da UE, que bradou contra a retirada dos crucifixos das escolas públicas, que se opõe à pílula abortiva nos hospitais portugueses e ao aborto nas primeiras semanas de gravidez por vontade da mulher, que se escandaliza com a hipótese do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a cada debate sobre a lei da nacionalidade convoca os delírios xenófobos do "Portugal para os portugueses"- repudia o comunicado de Freitas não o faz decerto em nome da alma laica, cosmopolita, individualista e libertária da Europa, construída pelas cinzas dos mártires de todas as inquisições e totalitarismos.
Para aqueles que, como a actual liderança do CDS, confundem os sentimentos religiosos de uma alegada maioria dos portugueses com uma identidade religiosa do Estado, o escândalo das afirmações de Freitas não pode estar no facto de invocar a "Virgem Maria" ou a linhagem comum das religiões monoteístas para frisar o respeito que Maomé nos deveria suscitar, ou sequer de hipotecar a liberdade de expressão às equações da estratégia geopolítica.
Suspeita-se até que, para a liderança do CDS, uma caricatura mais picante da mãe de Jesus desencadearia bastos autos-de-fé discursivos e exacerbados protestos de ultraje - pelo que o problema, para o CDS e para os como o CDS, estará em achar que o Maomé "deles" não chega aos calcanhares da "nossa" Virgem Maria.
É em nome dessa ideia de honra e superioridade chauvinistas e retrógradas que certa direita abjura Freitas e os outros que, absurdamente, pedem desculpa pela Europa.
Nada de confusões, então: não estamos, não podemos estar do mesmo lado. Entre os que crêem numa ideia de identidade colectiva divinamente decretada e imutável, para quem retirar crucifixos das escolas é uma cedência às "outras" religiões e o casamento é só entre homens e mulheres "porque sempre foi assim", e quem defende a liberdade de cada um configurar o seu mundo e a sua vida como bem lhe aprouver há uma linha tão funda que é um fosso, uma linha onde ninguém caminha. A mesma linha que separa a Europa das Luzes de todas as trevas, islâmicas ou não.»
[Fernanda Câncio, Diário de Notícias, 18 de Fevereiro de 2006]