quinta-feira, 9 de março de 2006

Ainda sobre as quotas

Os posts do Filipe e Rui focaram os aspectos decisivos desta questão, mas não queria deixar de voltar ao assunto.

1. As "comunidades". As quotas são, em abstracto, maus instrumentos. O Rui chama, e bem, atenção para os riscos da "comunitarização". Paralelos, aliás, aos das quotas "orgânicas" a que o Filipe aludia e que são hoje a regra, por exemplo, nos partidos políticos, com consequências por vezes ambíguas e na maior parte dos casos muito perversas. Mas as quotas de "comunidade" têm um aspecto ainda mais perverso: nelas, o efeito de legitimação da criação da quota é também um efeito "criador". Isto é, é a própria "existência" de semelhante coisa como uma comunidade de raíz étnica ou religiosa, por exemplo, que é validada.

2. A discriminação. No caso das assimetrias entre mulheres e homens, a "comunitarização" não está em causa. Pelo que os problemas que advêm do sistema de quotas são muito mais pequenos do que queles que, reiteradamente, a sua inexistência tem criado - ou não tem, pelo menos, resolvido. Deve ser este o critério decisivo quando está em causa não uma (suposta) "comunidade", mas sim um equilíbrio de participação que diz respeito, em partes simétricas, a toda a população. Em rigor, não devia ser necessário que houvesse quota nenhuma para garantir a participação em instâncias de representação ao nível de um terço para uma categoria da população que representa um pouco mais de 50% do total. Mas, declaradamente, é. Porque as desigualdades não apenas existem: são antigas, transversais, vincadas, persistentes. Numa palavra, discriminatórias. Em semelhante contexto, o que cria mais e mais sérios problemas: haver ou não uma quota feminina? Só por má vontade se poderá responder que é a quota. Mesmo que fosse uma má solução, seria sempre a menos má para um problema muito pior.

3. O mérito. O Filipe toca neste ponto essencial. Invocar o mérito para combater a quota feminina é esquecer (por muitos, de modo propositado) que, além de o mérito não ser o critério único, e nem sequer unívoco, das escolhas políticas, as próprias bases de recrutamento que conduzem à escolha de quem entra nas "listas" (aliás, não só de deputados, mas das próprias estruturas partidárias) são profundamente enviesadas do ponto de vista do género e advêm desde logo de padrões de participação distintos que nada têm a ver com o mérito. Isto é, o "mérito" (e quem o avalia) joga-se-se à partida num plano bem inclinado.

4. A caducidade. A caducidade da quota feminina será bem vinda quando corresponder à situação à partida mais desejável: aquela em que se gere, sem necessidade de um decreto, uma representação adequada do ponto de vista do género. Isto é, em que o funcionamento do campo político, quanto mais não seja pelo efeito da pressão simbólica (agora alavancada pela letra da lei), seja auto-suficiente para gerar um equilíbrio mínimo entre homens e mulheres. Claro que, tal como agora seria desnecessária a introdução da quota essa já fosse a realidade, no futuro seria também desnecessária a sua remoção, visto que não produziria qualquer efeito sobre o cumprimento dessa "garantia mínima" - embora saibamos como em muitos aspectos elas são importantes. Mas no dia em que sistematicamente o tal mínimo de 33% estiver abaixo do admissível, então a quota caducará. Por si.