Blasfémia, estado de direito e democracia
1. Segundo Freitas do Amaral, quinta-feira na Assembleia da República, os ataques a embaixadas europeias em países islâmicos foram “uma reacção condenável, mas compreensível, face às ofensas enormes feitas à comunidade islâmica por um jornal da extrema-direita dinamarquesa”. Em resumo, o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros compreende que se reaja com violência física a uma opinião que se considere ofensiva.
Esta posição é compreensível, pois é coerente com as anteriores declarações do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros sobre o mesmo caso. Mas é também, como essas outras, inaceitável, pois abre caminho à legitimação da intimidação física dos opositores e ao uso da violência para limitar a liberdade de expressão. Note-se que Freitas do Amaral (ou será o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros?) considera não só que o desrespeito pelos símbolos religiosos constitui crime, o que já sabíamos, como que a resposta justiceira da turba ofendida por esse “crime” (de opinião) é reacção compreensível, o que constitui novidade e surpreende num professor do Direito.
2. Estas declarações foram a cereja no bolo numa semana marcada já pela surpreendente posição do cardeal-patriarca de Lisboa, considerando que com o sagrado não se brinca e recusando com veemência o “direito à blasfémia”. Vale a pena citar extensamente:
“Este é o maior problema espiritual, com consequências morais, da nossa cultura contemporânea: relativizou-se Deus. Está na moda fazer profissão de fé de agnosticismo; o homem, considerado como individuo e não como pessoa, necessariamente comprometido com uma comunidade, tornou-se o único critério de verdade e de discernimento ético; Deus deixou de ter lugar na história. Apesar do apregoado respeito pelas religiões e pela fé de quem acredita, alguns não hesitam em brincar com o sagrado; chegou-se mesmo a apregoar, em nome da liberdade, o direito à blasfémia. Fiquem sabendo que para nós que buscamos o rosto de Deus e procuramos viver a vida em diálogo com Ele, isso nos indigna e magoa, porque temos gravado no nosso coração aquele mandamento primordial: “não invocarás o Santo Nome de Deus em vão”. Como afirmou um prestigiado colunista, que aliás se confessa descrente, com o sagrado não se brinca. O respeito pelo sagrado é algo que a cultura não pode pôr em questão, mesmo em nome da liberdade. A todos esses que sentem não acreditar em Deus, eu digo em nome do povo crente: a vossa dificuldade em acreditar em Deus, não toca na realidade insofismável de Deus.”
Sobre este discurso já Vasco Pulido Valente disse o essencial. Gostaria apenas de sublinhar duas questões.
3. Em primeiro lugar, mais do que reivindicar o “direito à blasfémia” eu, enquanto não crente que vagueia entre o agnosticismo e o ateísmo, reivindico a manutenção da inexistência da categoria de blasfémia na ordem jurídica democrática. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, blasfémia é um “dito considerado ofensivo, ultrajante em relação à divindade ou à religião”. Define ainda o mesmo dicionário que um dos sentidos de blasfemar é “dizer algo que vai contra ou não está de acordo com a doutrina religiosa, com as leis sagradas”.
No seu sentido literal, blasfémia só poderá pois ser uma categoria normativa no âmbito das colectividades voluntárias de crentes e, mesmo aí, sem efeitos associados de sanção que limitem os direitos, liberdades e garantias fixados na ordem jurídica geral. Por outras palavras, a categoria “blasfémia”, podendo ser legítima na ordem normativa das igrejas, é, e deve continuar a ser, irrelevante na ordem jurídica, a qual só será democrática se for profana.
4. O que significa, em segundo lugar, que a intervenção do cardeal-patriarca de Lisboa é, neste plano, uma intervenção política que deve ser tratada e respondida no plano político. Como, aliás, é política a reacção fundamentalista às caricaturas, não religiosa ou cultural. E é política porque o que está em causa é a existência de sanção jurídica para um tipo de opinião, a sua criminalização, não o direito ao debate crítico sobre essa opinião. O que está em causa é saber se o poder político terá, pelo menos, uma componente teocrática — pois só as autoridades religiosas poderão identificar uma blasfémia como tal — ou se deverá conservar-se democrático — porque a autoridade política estará reservada aos que forem escolhidos para, provisoriamente, terem essa autoridade.
A exigência política de contaminação da ordem jurídica pela ordem normativa das igrejas só pode ter, para quem defenda uma ordem democrática verdadeiramente liberal, uma resposta também política: a defesa intransigente da laicidade, enquanto suporte imprescindível dessa ordem democrática.