“Não fui feito para isto”
Depois de uma semana de interregno, retomo a escrita no Canhoto com a discussão de um dos últimos textos de Vasco Pulido Valente no Espectro (incluído no Público de 4 de Março), com o título que, entre aspas, “roubei” para titular também este meu texto.
1. A primeira parte do texto de VPV exprime uma reacção aristocrática à invasão dos média pela vulgaridade. Apesar do fundamento da reacção, que por vezes irrita, VPV tem toda a razão em sentir-se incomodado com os média. É saudável democratizar o acesso aos média, é mesmo suportável a visibilidade que ganhou uma mediocridade cultural antes escondida. Mas é insustentável que a visibilidade dessa mediocridade se faça às custas da promoção da diversidade cultural e intelectual da programação mediática e dos seus convidados. É inaceitável que os programadores de hoje fujam da palavra e da prática intelectual como o diabo da cruz.
E VPV tem razão, esta é uma primeira morte do indivíduo, pois a individualização supunha, e supõe, autonomia individual na capacidade de julgar e fazer escolhas informadas — exactamente o inverso do que é feito com uma programação que reforça o saber comum, a resposta estandardizada, o compromisso com a moda, o valor supremo da sorte. Em resumo, a retoma da individualização exige que se redescubra o valor positivo do esforço intelectual e da aprendizagem cultural. E da vergonha com a ignorância.
2. Mais razão tem ainda VPV quando sente o indivíduo em risco quando confrontado com um estado cada vez mais insidioso. Agora, eram escusadas as comparações com o regime de Salazar, até porque o problema é outro. No primeiro caso, o regime era autoritário e, portanto, reagia repressivamente a toda a iniciativa considerada ameaçadora. E essa reacção repressiva incluía, convirá recordá-lo, censura, apreensão de livros e jornais, prisão e tortura dos mais “teimosos”. Hoje não há censura, prisão ou tortura, apesar dos disparates sobre uma pretensa “censura oculta” que por aí proliferam sob a capa da maior irresponsabilidade política.
Mas há, hoje, problemas novos e graves que mesmo quando não ferem a liberdade, ameaçam de morte a autonomia sem a qual não há indivíduos livres e suficientemente diferentes uns dos outros para poderem ser, justamente, reconhecidos como indivíduos. Ou seja, corremos o risco de estar a assistir à emergência, em pezinhos de lã, de um Estado com propriedades totalitárias (mesmo que não repressivo, autoritário ou, globalmente, totalitário).
Um estado moderno com propriedades totalitárias é um estado que formata em lugar de reprimir porque dispõe dos poderes necessários para afectar intensivamente o quotidiano dos seus cidadãos de modos novos na história. É um estado que, por exemplo, em nome da promoção da saúde nos obriga a ser saudáveis, com tudo o que isso implica — e que no limite pode mesmo ser TUDO, pois não há hábito, público ou privado, que não tenha implicações sanitárias. Claro que para formatar com eficácia e para monitorizar os resultados dessa formatação também com eficácia, algum controlo social terá que ser construído, muita informação terá de ser recolhida e trabalhada em moldes cruzados. E, já agora, penas novas inventadas, para impedir que alguns poucos façam aumentar os gastos em saúde e segurança social com individualismos irresponsáveis (vedando-lhes o acesso ao serviço nacional de saúde?).
3. Anthony Giddens sustenta, há anos, que o “totalitarismo […] é uma propriedade tendencial do estado moderno” (1985: 295), porque a sua possibilidade “depende da existência de sociedades nas quais o estado pode penetrar com sucesso nas actividades do dia-a-dia da maioria da sua população” (1985: 302). (1) Essa possibilidade depende da mobilização de recursos tecnológicos de vigilância (de que os estados dispõem) e da difusão de concepções morais “totalizantes” (de que os fundamentalismos higienistas são um exemplo particular).
S.O.S Felicidade, uma banda desenhada de Griffo e Van Hamme (publicada em Portugal pela Meribérica em 1989), inclui um capítulo intitulado “À sua saúde”. É introduzido com uma citação de uma circular ficcionada (“Circular 97/5204 bis da Caixa Nacional do Seguro Médico Unificado”): “O primeiro dever dos sócios é protegerem a sua saúde. (…) Os agentes da polícia médica terão os mais latos poderes de vigilância e de investigação no sancionamento dos infractores.” (p. 20) (2)
4. Claro que é só uma banda desenhada. Tipo ficção-científica.
(1) Anthony Giddens (1985), The Nation-State and the Violence, Cambridge, Polity Press.
(2) Griffo & Van Hamme (1988, 1989), S.O.S Felicidade, Lisboa, Portugal.