sexta-feira, 21 de abril de 2006

Decadência?

Na sua crónica do último Expresso (17/04), Clara Ferreira Alves lamenta “a morte do romance”. Mais rigorosamente, a “morte” do grande romance, trocado pelos livros de Dan Brown e de Paulo Coelho.

1. O destino de Borges seria um dos exemplos da troca: “Borges esfuma-se excepto para uma legião de culto”. Dostoievski encabeça uma longa lista de escritores tratados como “fragmentos arqueológicos que persistem e vestígios de uma cultura extinta”.
Quando leio este tipo de afirmações ocorrem-me sempre as mesmas perguntas: com base em que dados são elas proferidas? Que estudos as suportam? É que pelos menos em termos impressivos, há muitos dados que as contrariam, em lugar de as confirmarem. Por exemplo, nunca como na última década se traduziu em Portugal tanto Borges (com a obra completa publicada pela Teorema) ou tanto Dostoievski (a ser traduzido directamente do russo na Presença). Serão loucos os editores em causa? Ou inesperados beneméritos?

2. As afirmações de Clara Ferreira Alves constituem um exemplo, entre muitos, das versões contemporâneas das teses da decadência civilizacional. Porém, quando concretizadas em domínios como os das práticas culturais, enfermam sempre de um erro de perspectiva. É verdade que a progressão da escolarização não foi acompanhada por uma progressão proporcional dos consumos culturais eruditos. É também verdade que tem hoje expressão pública uma cultura de massas com dimensão antes desconhecida. Mas essa cultura de massas ocupou um lugar vazio mais do que o lugar da cultura erudita. E se o peso desta entre os leitores não cresceu ao mesmo ritmo a que estes cresceram, o seu número absoluto cresceu imenso. Assim se explica o paradoxo de hoje se vender e ler mais TANTO Borges, ou Dostoievski, como um Dan Brown ou um Paulo Coelho. Mais do que um jogo de soma nula, é de um jogo de soma positiva que se trata: um jogo inteligente, portanto, segundo os critérios de Cipolla. Parte da centralidade perdida dos grandes romancistas, lamentada por Clara Ferreira Alves, deve-se pois a um progresso mais do que a uma decadência. Cresceu muito o número absoluto de leitores, pelo que a leitura não é mais uma prática de elite. Coexistem hoje práticas de leitura mais populares com práticas de leitura mais eruditas, muitas vezes, aliás, na mesma pessoa.

3. Obviamente, não se retira destas afirmações qualquer recusa da necessidade de fazer crescer, entre os novos leitores, as práticas de leitura erudita. Bem diferente, no entanto, é chorar um tempo perdido de ignorância de massas.