quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

O pragmatismo historiográfico

Rui Ramos, a cujos textos o Público dá guarida regularmente, assina hoje (na qualidade de "historiador") um artigo extraordinário em que defende, entre outras coisas, que o PS "nunca, desde 1974, encabeçou nenhuma grande mudança em Portugal". A frase é mesmo esta, e as palavras são mesmo estas, numa redundância que assusta: nunca, nenhuma.
O PS nunca teve um papel cimeiro na consolidação da democracia. Nem teve qualquer relevância especial no desencadear do processo de adesão à então CEE e respectiva concretização uma década depois. Isto não é, contra toda a evidência (historiográfica, inclusivé) uma mudança estrutural. Aliás, os próprios acordos com o FMI (citados no artigo) terão sido apenas uma "necessidade de cortar" protagonizada por um partido guiado unicamente pela sua sede de poder - sendo políticas duras de austeridade, como se sabe, a melhor forma de eternizar esse poder.
O PS não teve, também, nenhum papel na génese de aspectos laterais da vida das pessoas como o SNS nem esteve em muitos dos principais marcos do desenvolvimento nas áreas sociais: só para citar exemplos recentes, do Rendimento Mínimo Garantido aos processos de reforma da protecção social nos últimos anos. Mas, claro, as mudanças sociais não poderiam ser nunca "grandes" mudanças, porque por natureza são funções menores do Estado.
O PS não teve, de igual modo, nenhum papel na entrada no euro, foi apenas empurrado pelas circunstâncias. Como em toda a história das últimas três décadas, de resto: quando esteve, episodicamente, no centro da mudança, foi por coincidência; outros terão estado, decerto, por mérito e convicção. O PS, no fundo, nunca desempenhou papel nenhum, só o de protagonismo acidental e oportunista, enfeitado por "tatuagens tribais" (sic). O "verdadeiro" papel histórico da mudança esteve sempre reservado a outros, quem sabe com menos tatuagens .
Assim se fabricam as "verdades à deriva no mar da sabedoria nacional", algures entre a ideologia e o pragmatismo, de que o cronista nos fala - com manifesta sabedoria. E, aliás, com um poder de síntese entre pragmatismo e ideologia que no debate intelectual dá sempre este tipo de resultados.