Uma opinião sobre a questão religiosa no referendo do aborto
1. No post anterior o Miguel toca no cerne das complexas relações entre a religiosidade no mundo secular e as orientações das hierarquias religiosas.
2. Do Arcebispo só poderiamos esperar que repetisse a orientação da Igreja a cuja hierarquia pertence e de cujas orientações é co-autor e não só transmissor. Mas uma coisa é a hierarquia, outra a comunidade e ainda outra os sinais que a primeira dá à segunda. Continuo convencido, pelo que se viu até agora, que é no reconhecimento explícito do direito dos crentes à opinião feito pelo Patriarca de Lisboa, no modo como é encarada a diversidade das posições dos crentes que se encontra no tom da generalidade das posições expressas pela hierarquia e no subtil desligamento do preceito moral em relação ao ordenamento jurídico que consiste a grande novidade da posição da Igreja Católica neste referendo em relação ao anterior.
3. Seria anormal, isso sim, que a hierarquia da Igreja Católica, em tempo de campanha e quando interrogada sobre um tema concreto em relação aoqual tem uma orientação precisa, negasse ou diluisse a sua posição própria.
Ao expressar opinião está, do meu ponto de vista, a jogar com inteira propriedade o jogo democrático deste referendo e nunca entrevi nenhum sinal de que faria diferentemente. Mais, a Igreja Católica tem o direito - talvez até o dever - de deixar clara a sua doutrina moral.
3. Sobra, evidentemente, a questão de fundo de como tratar penalmente a inviolabilidade do direito à vida em nome do qual a Igreja esteia a sua posição. Aqui há que realçar, penso, dois pontos que enfraquecem o princípio aparentemente sólido:
a)Desde que há na lei penal excepções que permitem a IVG em certas circunstâncias que a posição de princípio da Igreja Católica deixou de estar reflectida de modo absoluto no ordenamento jurídico português sobre o aborto. Agora o que está em causa é apenas uma extensão do número de excepções, não é a criação da excepção. Em rigor, quem invoca este argumento já está contra a lei que existe e com a qual a sociedade portuguesa e a Igreja Católica já vivem sem sobressaltos nem apelos à desobediência, se exceptuarmos os fundamentalismos isolados que a própria hierarquia não abraçou.
b) A própria Igreja Católica aceita a possibilidade da arbitragem moral entre direitos contraditórios, mesmo a propósito da vida. Basta que recordemos a discussão havida aquando do novo catecismo. Sem conceder no ponto de que a definição do início da vida não é unívoca, a posição seria ainda a da recusa desta e não de qualquer arbitragem.
4. A posição moral da Igreja Católica sobre o tema do aborto é uma questão "do século" e mudará ou não com o modo como interiorize os dilemas morais das mulheres reais. Seguramente que, se a hierarquia não estivesse tão rigidamente fechada na matéria disciplinar do celibato do clero, a percepção do problema ganharia um foro de cidadania diferente. É certo também que, se a Igreja fosse uma instituição paritária ou que aderisse ao caminho da paridade entre homens e mulheres, as íntimas experiências da sexualidade feminina não seriam tão exteriores às experiências vividas de quem guarda a actualização histórica dos preceitos morais católicos.
Não pretendo, evidentemente, dizer que a Igreja submetida a essas diferenças tivesse necessariamente uma posição diferente sobre esta questão concreta, muito menos que a tivesse instantaneamente. Apenas acho que todas as arbitragens entre princípios contraditórios nesta matéria teriam que ser cuidadosamente reponderadas.
6. A questão da despenalização da IVG é tão excêntrica para a hierarquia religiosa porque trata de uma arbitragem de direitos tocada pelas consequências da grande questão do século XX que continua a passar marginalmente pela Igreja Católica: a da igualdade plena entre mulheres e homens. Contudo, se as eleitoras e os eleitores ouvem a hierarquia, têm as suas próprias experiências de vida e é nessa pluralidade de experiências que reside o segredo da boa convivência da fé e da religiosidade com as leis laicas das democracias contemporâneas, como é nela que se decidirá o sentido de voto de cada católico, seja qual for.