Um "crime", com ou sem lei
Como seria de esperar, e apesar das repetidas garantias em contrário, não passa uma semana sem que alguém da hierarquia da igreja católica venha a público fazer campanha declarada pelo "não" no referendo sobre a interrupção volutária da gravidez. Desta vez, o incumbido da tarefa foi Jorge Ortiga, arcebispo de Braga, numa entrevista à Rádio Renascença e ao Público. O arcebispo diz, entre outras coisas, que não será uma lei que fará com que "o que é mau deixe de ser mau" ou que fará com que o aborto deixe de ser um crime.
Quanto à primeira tese, cumpre lembrar que o que é sempre mau, e nas actuais condições é quase sempre péssimo, poderá tornar-se em algo muito menos mau - o que será um grande, e desejável, progresso.
Quanto à segunda tese, tem uma enorme virtualidade, a de separar bem as águas: as leis da república, por um lado, as leis eclesiásticas, por outro. A lei é uma coisa; a fidelidade individual aos princípios religiosos é outra. Por este último prisma, é indiferente o texto da lei para decidir ou não se estamos perante um "crime". Posso não concordar, mas é impossível não reconhecer que o argumento tem, paradoxalmente, um lado positivo para os católicos que possam ter dúvidas sobre o sentido de voto no referendo. Se é indiferente, mude-se a lei para resolver os problemas graves de saúde pública, de iniquidade, e de total falta de transparência que a situação actual provoca.
E deixemos que, num quadro legal renovado e razoável, as "consciências individuais" funcionem em obediência (ou não) à religião que professam (ou não).