Heranças contra escolhas (corrigido)
1. Está prevista, para o próximo dia 4 de Janeiro, a discussão, em Plenário da Assembleia da República, de uma proposta de Lei do Bloco de Esquerda sobre a introdução do “ensino multilingue nos estabelecimentos públicos de educação e de ensino”. Trata-se de uma proposta tecnicamente errada e politicamente reaccionária que, espero, seja rejeitada.
2. A definição política mais inclusiva de nacionalidade que conheço é aquela que se centra na pertença a uma colectividade política e de língua. E é inclusiva porque a língua, ao contrário, por exemplo, da religião, não exige exclusividade nem conversão: pode ser simplesmente aprendida e adicionada a outras línguas já conhecidas. Integrar novos cidadãos em Portugal significa pois, entre outras coisas, desenvolver a capacidade para estes falarem, com competência, a língua portuguesa, independentemente de outras línguas. Este deve constituir objectivo central do Estado no âmbito da política educativa.
3. A proposta do BE de “constituição de turmas bilingues a partir do 1.º ano do 1.º ciclo” é errada porque o ensino em duas línguas e com dois professores se traduzirá sempre numa redução do tempo de trabalho dos alunos na aprendizagem das competências e conteúdos curriculares básicos. Mais, introduzirá, uma profunda desigualdade entre os alunos que falam já, ainda que desigualmente, outra língua materna que não o português e os alunos portugueses que integrarem essas turmas, dado que no projecto do BE está previsto que as turmas bilingues “devem ser constituídas por, pelo menos, 30% de alunos portugueses, para evitar a ‘guetização’ dos alunos imigrantes”. Para além do que, não sendo o eventual problema linguístico de nacionalidade mas de ascendência, os filhos de estrangeiros nascidos em Portugal com condições para serem portugueses de nacionalidade poderão ter as mesmas necessidades linguísticas que os que permanecem estrangeiros. A não ser que se queira distinguir entre portugueses de primeira e de segunda, utilizar neste caso o critério da nacionalidade só pode dar asneira. E as hipóteses de classificação alternativas não são mais famosas…
4. A cidadania é reforçada quando se ampliam as competências e recursos que cada um de nós pode mobilizar para agir. Num mundo crescentemente globalizado, a competência para usar as principais línguas de comunicação internacional constitui condição para ampliação da cidadania. Hoje, a primeira dessas línguas é o inglês. Não dominar o inglês é factor de exclusão que o Estado deve corrigir, recusando colocar, diletantemente, esta competência básica no mesmo plano da que resulta da aprendizagem de outra segunda língua. Convém, por isso, qualificar com mais rigor a proposta do BE que aponta para que no “início do segundo ciclo do ensino básico, as escolas [possam] incluir a língua parceira como uma das opções para o ensino da segunda ou terceira língua estrangeira ou como opção adicional não curricular”. A de aprendizagem de outra língua estrangeira, para além do inglês, deverá ser possibilidade adicional, sem prejuízo de escolhas menos fundadas em pertenças herdadas…
5. E este é o problema político de fundo da proposta do BE: presume-se que os novos portugueses, filhos de imigrantes, devem ter raízes nas terras dos seus ascendentes. Insisto, novos portugueses, pois se já leram a nova lei da nacionalidade com atenção certamente já se aperceberam que os filhos de estrangeiros nascidos em Portugal que concluam o 1.º ciclo do ensino básico adquirem, por esse facto, o direito à naturalização, independentemente da regularidade da situação dos pais, sem necessitarem de se sujeitar a outras condições (nomeadamente o exame de português…).
6. Como se presume ainda, na proposta do BE, que as heranças culturais são todas respeitáveis e, candidamente, se propõe que “a escola seja duplamente inclusiva: não só incluindo a língua materna dos filhos de imigrantes como também a sua cultura”. Pois não são, nem muitas das heranças culturais que nos vêm de fora nem muitas das que aqui sempre medraram. O critério da origem para seleccionar conteúdos curriculares tem um nome: é critério reaccionário, baseado no costume e não na razão.
7. Como é reaccionária, na sua candura, a expressão “a sua cultura”!
A sua, deles, que quem tem pais de outras terras tem certamente outras culturas! Assim se criam “outros” que depois outros “outros” se encarregarão de hierarquizar.
Assim se raciocina como se em Portugal houvesse uma só cultura, seja lá o que isso for! E como se se nascesse já culturalmente constituído e a escola trabalhasse com entes “finalizados”.
É reaccionária tamanha idolatria das heranças e tão pouca preocupação com a pergunta-chave: como ampliar as competências para ter, neste nosso mundo de hoje, mais possibilidade de escolha?